terça-feira, 18 de julho de 2017

Laudelino Freire - O primeiro Grande Dicionario Brasileiro


Laudelino Freire



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Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa é o primeiro grande dicionário brasileiro de Língua Portuguesa. Organizado por Laudelino Freire,
Também escreveu Um Século de Pintura: 1816 - 1916[1], que é uma referência básica no estudo da pintura no Brasil do século XIX.
Foi membro da Academia Brasileira de Letras, ocupante da cadeira 10, de 16 de novembro de 1923 a 18 de junho de 1937.
Laudelino Freire (Laudelino de Oliveira Freire), advogado, jornalista, professor, político, crítico e filólogo, nasceu em Lagarto, SE, em 26 de janeiro de 1873, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 18 de junho de 1937.
Foi aluno da Escola Militar do Rio de Janeiro, tendo interrompido o curso por doença. Formou-se em Direito em 1902. Além de advogar, exerceu cargos públicos, o magistério e o jornalismo, colaborando na imprensa também, sob os pseudônimos Lof e Wulf.
Depois de cumprir três mandatos como Deputado Estadual na Assembleia Legislativa de Sergipe, Laudelino Freire fixou-se definitivamente no Rio de Janeiro. Foi professor catedrático do Colégio Militar, tendo lecionado várias disciplinas (Português, Espanhol, Geografia, História e Geometria) e consolidado sua carreira de escritor, jornalista e filólogo.
Como jornalista, foi diretor da Gazeta de Notícias e colaborou em diversos jornais, entre eles o Jornal do BrasilJornal do Comércio e O País. Seus artigos foram reunidos em Notas e perfis, em onze volumes (1925-1930), definindo cada um deles a cultura e as ideias de Laudelino Freire, um dos maiores investigadores dos estudos clássicos e filológicos no Brasil.
Em 1918 fundou a Revista da Língua Portuguesa, que dirigiu, publicando trabalhos de alto valor, quer literário, quer filológico, como a Réplica de Rui Barbosa. Os seus 68 volumes publicados são até hoje um indispensável subsídio para quem pretenda estudar a Língua Portuguesa. Fundou e dirigiu também a Estante Clássica (15 volumes). É o autor do Grande e novíssimo dicionário da Língua Portuguesa, de publicação póstuma em cinco volumes, com a colaboração de J. L. de Campos, Vasco Lima e Antônio Soares Franco Júnior.
Foi um dos maiores defensores da simplificação da ortografia no Brasil. Em toda a sua obra de escritor e de jornalista cultivou o Português não com o espírito avaro do amador, e sim com a generosidade larga de uma vocação, divulgando os tesouros que descobria. Não era a gramática que ele venerava, e sim, a história, o desenvolvimento, o espírito da língua.
Em 1920, a Liga da Defesa Nacional convidou-o a substituir Olavo Bilac, para proferir a conferência “A defesa da língua nacional”, dentro da programação da Liga em prol dos interesses brasileiros.
Segundo ocupante da cadeira 10, foi eleito em 16 de novembro de 1923, na sucessão de Rui Barbosa, e recebido pelo acadêmico Aloísio de Castro em 22 março de 1924. Recebeu o acadêmico Aldemar Tavares.





 



Bibliografia

Escritos diversos, 1897.
História de Sergipe, 1900.
Sílvio Romero, 1900.
Linhas de polêmica, 1901.
Sonetos brasileiros, 1904.
Os próceres da crítica, 1911.
Estudos de Filosofia e Moral, 1912.
As suas contradições, resposta a Sílvio Romero, 1914.
Um século de pintura, 1916.
Rio Branco, 1918.
A defesa da língua nacional, 1920.
Clássicos brasileiros, 1923.
Verbos portugueses, 1925.
Discursos, 1925.
Livros de Camilo, 1925.
Notas e perfis, 11 vols., 1925-1930.
Graças e galas da linguagem, 1931.
Seleta da língua portuguesa, 1934.
Linguagem e estilo, 1937.


Casa Onde nasceu Laudelino Freire 

F





A DEFESA DA LÍNGUA NACIONAL
                                                      [...]
Entre os elementos orgânicos de uma nação, é o idioma a revelação mais eloquente do espírito de nacionalidade e, do mesmo passo, o vínculo mais forte da união nacional.
                                                     [...]
O dever de conservar a língua tanto mais avulta quanto mais cresce o número dos que a corrompem, de parelhas dadas com inumeráveis elementos perturbadores e dissolventes, que fazem periclitar a homogeneidade idiomática. Tudo lhe impõe conservação. Mas, como articular, em condições de exequibilidade, a defesa de uma língua, que tudo trabalha para vasá-la ‘nos resíduos impuros de um idioma de aluvião”, ao revés de “espelhá-la nessa língua decantada e transparente, que a tradição filtrou no curso dos tempos”? Como se deve traduzir o nosso empenho para a tornar mais nacional, mais estimada, mais pura e mais vernácula?
A língua portuguesa, sabei-lo, é patrimônio comum de dois povos. Portugueses no-la herdaram, e portugueses foram os que no-la ensinaram. Ao cabo, porém, de um viver quatro vezes secular, no transcurso do qual, com superioridade inegável, nos libertamos econômica e politicamente, logrando em seguida a emancipação na literatura, não fora de esperar, hoje, que a nossa cultura, zelo, orgulho, nos não desse a certeza de que já somos um povo, que possui, como os demais, a sua língua, e, como os demais, sabe exigir que todos lha reconheçam como própria.
E essa condição é, senhores, o primeiro passo na defesa do idioma, porque com ela é que madrugamos na jornada larga que temos que fazer, é ela que nos imporá o sermos tão zelosos dele quanto o são dele ciosos outros que também o falam. Sim. Se há quase um século logramos desempeçar as asas das mãos que as detinham, razão hoje não há para que consideremos, a nós mesmos, empecilhados no em que nos cumpre ser absolutamente autônomos. Cada povo com a sua língua. A velha e amiga nação foi, é certo, a nossa Metrópole. Ela, porém, lá, e nós aqui. Hoje, porque ela aqui está, e nós daqui não saímos, não se segue que ela continue a ser Metrópole, e nós sejamos os primeiros em levar mão dessa autonomia, para que não fique de pé a presunção dos que querem reduzir-nos a pouco, como já o quis fazer no seu tempo esse Herculano, a quem tanto admiramos, quando nos brindou com estas palavras, que refletem o pensamento dos que não conformam com as opulências deste país, da sua inteligência e da sua raça: “A nossa melhor colônia é o Brasil, depois que deixou de ser colônia nossa.” Ouvi a Latino Coelho: “Só na América fizemos exceção à desídia hereditária com que semeamos sem colher. Só ali colonizamos na própria acepção desta palavra.”
Nessa caçoada jovial entretinham-se eles, que, afinal, parece não queriam que chegássemos nós onde já estamos. “A todos e a cada um se podia perguntar, como àquela dama da aula de Luís XIV, de calçado alto, de riçado alteroso, de mangas tufadas, de ancas e ilhargas postiças ‘Tudo isso sois vós, ou é vós tudo isso?’” (Cast., Liv. Clas.)
Valha-nos, senhores, a verdade de que o anfitrião tem, e há de ter sempre, direitos inauferíveis. Se na Índia, na China, no Japão e em África, o mistagogo das novas civilizações não soube efetuar o processo da verdadeira colonização, e somente a nós, na própria acepção desta palavra, soube fazê-lo infestadamente, como o entende o autor da “Oração da Coroa”, é o caso de preferirmos ser China ou África, contanto que fiquemos com a liberdade de nos não considerarmos a nós mesmos colônia de ninguém.
Repito-vos, senhores, com convicção tresdobrada: a primeira defesa do idioma está no reconhecimento obfirmado desta verdade: cada povo com a sua língua.
                                                     ***
E cada língua, escreve o príncipe do idioma, cada língua tem no seu gênio uma força de espontaneidade e seleção, um critério de acerto e um tipo de beleza, que se exercem, ou se enunciam, pela sensibilidade e o instinto dos que falam. É essa intuição da vernaculidade, esse como que sexto sentido, o da linguagem, que parece ter por órgão o ouvido, e do ouvido recebe o nome.
Com o ter a língua no Brasil a sua intuição de vernaculidade, a sua espontaneidade nativa, o seu critério, a sua moldagem, o seu torneio, cunho especial da frase, e fisionomia particular, porfiam glotologistas lusitanos em descobrir em tudo isso, que é o gênio dela, a existência de um dialeto brasileiro, “surrão amplo, como lhe chama Rui, onde cabem à larga, desde que o inventaram para sossego dos que não sabem a sua língua, todas as escórias da preguiça, da ignorância e do mau gosto”.
Não falamos nós um simples dialeto, como entendem Leite de Vasconcelos, Júlio Moreira, Adolfo Coelho, Mendes dos Remédios, Gonçalves Viana e Ribeiro de Vasconcelos, - senão a mesmíssima língua em que escreveram Camões, Sousa, Bernardes, Herculano, Vieira e Castilho. O dialeto, como o querem aqueles sabedores dos fatos glóticos, seria uma forma de “relaxação e de desprezo da gramática e do gosto”, seria forma de inelegância, obscuridade e deturpação do sabor clássico; seria, em suma, forma de língua inculta, do sermo rusticus, do sermo castrensis.
Brasileiros e portugueses, de parte a parte, colocam o problema, que não devera sair do terreno da glotologia, no ponto de vista regionalista, ou melhor, patriótico.
Não pretendem os segundos que falemos língua literária e culta, senão língua, cujos caracteres morfológicos, semânticos, sintáticos e lexicológicos, a põem dependente e em plano inferior à deles. Entre os mais convencidos de que falamos um dialeto está Leite de Vasconcelos, para quem – “a língua nacional do Brasil é o português, o qual levado para meio mui diverso do da sua origem, tem sofrido muitas modificações. Os escritores brasileiros muito têm discutido, no ponto de vista patriótico, se o português no Brasil é ou não dialeto. Se chamo dialeto, por exemplo, ao português de Trás-os-Montes, com mais forte razão ao português do Brasil, ou brasileiro, devo dar este nome”. Aqui Leite de Vasconcelos foi muito além do ponto de vista dos escritores brasileiros; foi ao ponto de vista do exagero depreciativo, e de jeito tal que, passando a indicar os caracteres principais do que ele chama dialeto brasileiro, faz observações acerca da fonologia, da morfologia, da sintaxe e do léxico, que, contrastando com a sua indiscutida autoridade, muito longe ficam de poder aspirar a qualquer conclusão.
Fácil, porém, será contrapor às palavras do emérito dialetologista as do nosso sábio filólogo João Ribeiro, que, depois de tratar o assunto, com maior e melhor desenvolvimento, conclui por afirmar que as modificações da língua no Brasil nunca constituíram verdadeiro dialeto. Vai mais longe Alfredo Gomes, sabedor igualmente acatado: “Não há verdadeiramente dialeto brasileiro... Há, pelo contrário, tendência assinalada, da parte dos que são instruídos, para uniformizar sintaticamente as duas línguas... A tentativa de aproximação fraseológica, cada vez maior, não sofre peias opostas por premeditado ódio entre as duas nações.”
Não há, nem pode haver entre elas, no tocante à língua, nenhuma supremacia. Bifurcado, há quatrocentos anos, aqui e lá, o português prossegue evolução divergente sob o influxo de fatores mesológicos. Esses, não operam, para menos, diferenciação alguma que dê à ex-Metrópole o ostentar-se na elevação de um falar tradicional e culto, enquanto nós gaguejamos um falar regional e corrupto, podendo nós apenas contentar-nos com a verdade que proclama Littré - o dialeto também pode comportar certa cultura literária.
A primeira condição da existência do dialeto é uma língua mãe, da qual seja aquele uma diferenciação caracterizada; e a segunda, igualmente necessária à existência dele, é que essa diferenciação se opere em região do domínio da língua comum. De modo que o conceito do dialeto outro não é que o conjunto das alterações que caracteriza a linguagem de uma província, colônia ou outra qualquer região, em relação à língua da Metrópole.
As modificações da língua brasileira não têm sido nem são de molde que caracterizem uma dialetação, consoante aquele conceito.
O nosso vocabulário é o mesmo, “mais opulento com o elemento tupi-guarani, e mais alguns termos africanos”. Diferenças sintáticas não existem e as que possam ser salientadas tão pequenas se nos antolham, que não são suficientes para particularizar uma linguagem. São frases isoladas, de construção nossa, tais como: vi ele, isto é para mim ver, estava na janela, resido à rua, e outras, que não chegam a assinalar uma diferenciação diversa da construção sintática lusitana. Poderíamos salientar aquele emprego do pronome sujeito pelo objeto, no vi ele, e a maneira muito nossa de colocar na frase as variações pronominais. Mas nem esses mesmos fatos linguísticos são exclusivamente nossos. Todos os clássicos, como nós, ora usaram a próclise em lugar da ênclise, ora essa em lugar daquela. É que o problema do sinclitismo pronominal, lá como aqui, é também uma questão de eufonia.
Se meras diferenças da fonética pudessem, por si sós, constituir uma dialetação, nem assim - posto seja na prosódia onde o falar brasileiro mais se distingue do falar português - nem assim teríamos nós um dialeto, porque tais diferenças apenas se limitam, por mera influência climatológica e desatenção à lei do menor esforço, a fazermos soar as vogais com maior vigor e em acentuarmos sílabas subordinadas que em geral o português omite.
Ainda que no período colonial estivéssemos sob o domínio da língua da Metrópole, contesto, senhores, que nele tivéssemos chegado a uma dialetação.
No período áureo do Quinhentismo, por intermédio dos donatários e colonos que nos vieram povoar, recebemos a língua de Camões, que aqui sob a influência de novos fatores mesológicos se transformou numa “vergôntea vigorosa e forte”; e “nesta evolução divergente, escreve Carlos Pereira, o falar brasileiro e o lusitano apresentam-se como codialetos do português quinhentista”. Sob este aspecto sim, a língua brasileira é um dialeto, como dialeto é a língua de Portugal. No em que, porém, a querem considerar os glotólogos de além-mar - dialeto não é essa língua em que escreveram Gonçalves Dias, Francisco Lisboa e Machado de Assis, e na qual foi vazada essa Réplica, que é modelo imortal “daquela formosa maneira de escrever que deleitava os nossos maiores”.
Quantos escritores, entre os que mais souberam ilustrar a língua oriunda do Lácio, de Camões a Filinto, de Filinto a Latino, atingiram essa culminância e assim se revelaram: “rico, opulento, substancioso nos pensamentos, variado e abundante no vocabulário, delicado no jeito e torneio da frase, sempre tersa e castigada, perspícuo, luminoso e elegante no falar, ore rotundo, sempre elevado, sempre grande, sempre sublime, sempre igual a si mesmo, se, por vezes, se não excede? Não nos lembra escritor algum, excetuados o Padre Antônio Vieira, e o fecundo Antônio Feliciano de Castilho, em alguns de seus passos, di-lo o nosso glorioso Carneiro Ribeiro, que escreva e fale com a propriedade com que se exprime este escritor;... que encontra em si mesmo os modelos de sua linguagem, que admiravelmente se adapta ao pensamento, o debuxa e traduz, passando a palavra pelo cadinho mágico de seu espírito, onde se refina e aprimora e donde distila em gotas de cristal e fios de oiro.”
Vede bem que Rui é o maior escritor que a língua tem dado; e a Réplica, um dos mais grandiosos monumentos literários que já saíram da pena de escritor de língua portuguesa. E se assim é, encostemos, senhores, esse livro ao coração dos nossos moços; levemos essa obra ao conhecimento dos mestres da juventude, dos nossos professores de humanidades e de todos os nossos intelectuais; espalhemo-la pelo país inteiro, porque ela valerá pela melhor das defesas, e por uma falange de hinos que hão de perpetuar a língua no Brasil.
Na pena de Rui, a língua não é hóstia pacifica, nos sacrifícios judaicos, para deleite da horda de corruptores e bárbaros.
                                                       ***
Não pequeno será o desserviço trazido à língua, se a nossa Academia de Letras persistir no intento de levar ao cabo um dicionário de brasileirismos, o qual de modo algum deve preceder ao dicionário de genuíno vocabulário. Brasileirismo, como o está entendendo aquele areópago de humanistas, e segundo tem tomado a si demonstrá-lo o provecto Sr. Solidônio Leite, é sinônimo de corruptela, e toda corruptela vocabular nunca deixou de ser escalracho da linguagem. Não continue a egrégia corporação a gastar o tempo com essas cogitações. O que lhe cumpre fazer é organizar o nosso dicionário, haja o que houver, custe o que custar, porque é esse dos seus fins o que mais lhe justifica e abona a existência.
Esse, sim, o mais assinalado serviço que prestará à nossa cultura literária, de que depende o aperfeiçoamento da língua.
Já lá vão mais de três séculos que a língua francesa se estorcia em piores condições do que a nossa. Incumbida, porém, que foi, a Academia Francesa de elaborar o dicionário normal, que o governo adotou, para logo, como faz sentir Grivet, sob o influxo dessa organização definitiva, a que aliás aderiram patrioticamente as mais altas inteligências, veio o idioma daquela nação a assumir a imponente preponderância que exerceu e ainda exerce no mundo das ideias. Disto se faz manifesto que a almejada fixação da materna língua só se completará, como a da francesa e a da castelhana se completaram, quando tivermos uma academia que nos dote com um dicionário.
E por que não o fará a nossa, se o caminho lhe está traçado?
Tendo ela, como tem, no seu seio, entre autoridades várias, notáveis profissionais da Filologia, e todos dentro da ordem - João Ribeiro, Laet, Alberto Faria e Silva Ramos -, bastaria que estes se constituíssem em comissão central da grande obra, e empreendessem a revisão e fusão dos dicionários desde o de Morais até o de Ramiz Galvão, para o que à própria competência deveriam juntar a colaboração dos mestres, que nenhum lha negaria. E destarte, quando obra original e completa não realizasse, dar-nos-ia, ao cabo de algum tempo, uma edição consideravelmente melhorada e acrescida do melhor dos nossos dicionários, na qual se procuraria pôr termo à anarquia ortográfica, com o simplificar e uniformizar a escrita; se incluiriam os inumeráveis vocábulos que ali não figuram, procurando-se de todos dar a legítima etimologia; esclarecer-se-iam pontos duvidosos da prosódia, da sintaxe, da lexicologia, à luz dos textos dos grandes escritores. Ser-lhe-ia ainda dado, se o entendesse, ouvir a sua coirmã de Lisboa.
Será porventura irrealizável esse trabalho? Não. Por que foi possível a Morais, no retiro solitário da Moribeca, em Pernambuco, elaborar um dicionário ao alvorecer do século passado, e não pode hoje a Academia de Letras Brasileira, num centro, como este, onde nada lhe falta e tudo lhe sobra, empenhar-se na feitura desse livro?
Acerca do nosso inolvidável lexicógrafo, disfarçamos uma injustiça com que se lhe diminui o mérito.
O douto Herculano não via com olhos de simpatia aquele grande compatriota nosso. A propósito da palavra brial, a que ele deu a significação de manto dos cavaleiros, disse o emérito historiador, em nota das suas Lendas e narrativas: ‘É um dos bastos destemperos daquela babel da língua portuguesa.” Não é babel da língua o livro que se tornou, no conceito do autorizado Sr. Leite de Vasconcelos, instrumento imprescindível de quem quiser saber a língua e escrevê-la com acerto. E por que foi assim destratado o nosso Morais, não o sabemos; o que sabemos é que dicionário igual ao seu não o escreveu nenhum português, nem a língua até hoje possui melhor, - confissão que faz amiúde o mais recente dos vocabularistas portugueses - Cândido Figueiredo.
Por tudo, fora muito para desejar que a douta instituição do Silogeu se desviasse das discussões em que se entretém, e começasse de trabalhar no “primeiro livro da nação, que é o dicionário da sua língua...”
                                                     [...]
É manifesta, senhores, a divergência de brasileiros e lusitanos no que concerne à matéria ortográfica. Díspares presentemente no modo de a entender, caíram ambos, por deplorável desinteligência, na mais profunda anarquia, que os segundos vieram agravar.
Portugal, seguindo o rumo das inovações, desprezando monumentos, tradições e origens, e sem que quisesse lembrar-se que nós brasileiros, seis vezes mais numerosos, temos a mesma fala, criou um sistema para a sua grafia vocabular, e a impôs, oficializando-a, aos seus naturais.
Após a sucessão de algumas gerações, a velha nação não escreverá a mesma língua dos seus e dos nossos avoengos, nem escreverá língua que seja portuguesa, nem latina, senão uma terceira sem antecedentes que a esclareçam e justifiquem. Será outra língua, que terá por origens da sua grafia o formulário ortográfico do decenvirato que ideou a reforma; por tradições, o vocabulário remissivo de Gonçalves Viana; e por monumentos os livros sônicos dos atuais publicistas lusitanos.
Estará o Brasil por isso? Por isso estarão os que nutrimos o amor do idioma?
Não. A ortografia de uma língua não é coisa que se reforme. Ortografia estuda-se, esclarece-se, mediante a etimologia; simplifica-se mediante a ação secular; e uniformiza-se consoante os esclarecimentos e investigações de casos controvertidos. Nunca jamais se lhe poderá alterar radicalmente, e por decreto, a feição tradicional, legítima e legitimada, se não admitir e consagrar as alterações que lhe vão sendo determinadas pela ação do uso e do tempo. Através dessas transformações há de, porém, ater-se aos laços de origem, vinculada indissoluvelmente aos elementos genitores, que a produziram.
Procurar o padrão da uniformidade gráfica em exclusivos princípios ortoépicos, é destruir os monumentos da língua e da literatura; é gerar a homofonia, fenômeno perturbador da linguagem; é criar a dificuldade da homografia, e com esta a confusão, pelo processo da destruição de elementos etimônicos das palavras; é não raro destruir a figura dos afixos, elementos necessários para o estudo da palavra, para a inteligência da língua, para o verdadeiro conhecimento dos valores das formas simples e compostas, pondo-nos na ignorância de sua genuína significação; é reduzir o vocabulário e, por fim, atentar contra a estética do idioma, enchendo a linguagem de formas ilegítimas e extravagantes. Procurá-lo, no entanto, segundo o processo de uma simplificação racional, que firme por modelo a grafia consentânea com o uso e a etimologia, seguindo-a nas suas mudanças naturais, é decerto tender para instituir “sem inúteis abalos, o desejado escopo da unidade ortográfica”.
                                                     [...]
(“A defesa da língua nacional”, conferência realizada no dia 10 de abril de 1920, no Salão Nobre da Biblioteca Nacional.)





DISCURSO DO SR. LAUDELINO FREIRE
SENHORES Acadêmicos:
Cantam ainda, nas largas ressonâncias das vibrações patrióticas, os hinos triunfais da Festa do Sol.
Todo um povo coroava, no altar da sua admiração, o jubileu de uma existência flamejante, não raro combatida, mas sempre venerada, cheia de lutas, vicissitudes e contrastes, mas só vivida para simbolizar o bem e a beleza, a justiça e a liberdade, o saber e a glória. Era o Brasil unânime, sem antagonismos nem rivalidades, por suas legítimas soberanias – “a soberania da nação, a soberania da inteligência, a soberania da consciência social e a soberania da verdade eterna” – a divinizar um nome, aclamando-o, entre os esplendores de uma solenidade singular e rara, à face do mundo e com o testemunho de Deus, o do maior dos seus homens.
Dir-se-ia que, no primeiro dia do tríduo memorável, ao celebrar-se no Campo de São Cristóvão a imponente cerimônia religiosa, se consumara afinal o consórcio da grandeza moral da pátria com a onipotência espiritual do filho.
Sublime quadro, e talvez único em toda a nossa vida, foi o desse instante!
Quando, sob a comoção de tantas e tamanhas dignificações, de olhar volvido aos céus, pedia o excelso compatriota ao Senhor dos mundos lhe desse força para resistir e ânimo para agradecer, – toda a multidão ali compacta, enternecida e arrebatada nos estos da mesma exaltação, banhava-se na luz de dois sóis – a que descia das alturas siderais e a que se derramava da eloqüência do homem, em cuja boca selara Deus o poder presciente do verbo, que o fizera divino entre humanos.
E como se lhe não arrebentaram as cordas do coração, represado pela intensidade de tantas alegrias, de tantas compensações, de tantas vitórias, alcançadas sobre tantos dissabores, tantos reveses, tantos martírios? Que se passaria no recôndito daquela alma, vendo-se assim transformada em objeto de veneração tão profunda e de tão grandiosas pompas, como só se tributam aos que, mergulhados já no sono da outra vida, ressurgem, no seio da história, engrandecidos pela posteridade?
A vida de Rui Barbosa, onímoda e onipatente, revela o quer que seja de essência miraculosa.
Eleito para galgar os altos cimos do pensamento, tornou-se mestre entre sábios, arquétipo do homem de estado, assombro da tribuna; encarnação viva do espírito liberal, idealista e evangelizador; a mais elevada expressão mental e política do seu país e do continente, condensando em si uma época e um idioma.
À luz dos julgamentos definitivos é que há de avultar-lhe o nome. Resplandecidos então pelo crisol da justiça sem manchas, refulgirão os predicados que lhe deram a ele a posição extraordinária e única, que começou de conquistar, tanto que se estreou, madrugando, nas lides e lutas do homem público.
Contemporâneos da sua época, aquecidos ao calor dos seus ideais, tocados da magia da sua palavra e do fogo comunicativo das suas paixões; participantes das suas pelejas, nelas combatidos ou com elas solidários, ora arrebatados no torvelinho dos temporais, ora arroubados nos transportes dos hinos das suas vitórias, sentindo as mesmas alegrias, ou curtindo as mesmas dores, – nós, os que aspiramos o ambiente em que viveu, lutou e se desdobrou esse homem-prodígio, apenas podemos sentir-lhe a grande obra e gozar-lhe os primeiros frutos.
Sentimo-la somente, mas não a entendemos; fruímo-la, sem lhe penetrarmos a extensão, que a eleva indisputavelmente ao plano das maiores construções ideais em prol do direito contra o despotismo, da verdade contra o erro, da virtude contra a maldade, da firmeza contra a frouxidão, das realidades grandiosas contra o instituto das razões de estado, não raro delusórias e fementidas.
Coevos desse esforço de reconstrução política e trabalho messiânico de beleza e patriotismo, nem por isso deixam de existir vozes negativas, que acusam o reformador, como a Cristo acusaram os judeus dizendo, no pretório do magistrado que lavou as mãos diante da sua fraqueza (segundo o Evangelho de S. Lucas, cap. 23, 2): “A este temos achado pervertendo a nossa nação.”
Há uma luz, Senhores, a luz da verdade, que dissipa o fumo negro que se exala do profundo da maldade humana. A lâmpada que ilumina as campas mortuárias não tem a mudez sempiterna do sepulcro. – “Lampas contempta apud cogitationes divitum, parata ad statutum.” – São palavras de Jó.
Para o julgamento do homem que se divinizou na obra do engrandecimento de um povo, na redenção de uma raça, na vigilância das liberdades, no apostolado do regime; do político clarividente cuja ação teve epopéias como a do civilismo, a de Haia, a de Buenos Aires e a do Código Civil – “há de estar sempre guardada e prestes para quando for tempo” aquela lâmpada que, sem intermitências, já ardia nos templos das divindades pagãs, simbolizando a luz da verdade eterna.
É através dessa claridade que há de mostrar-se a figura de Rui, esculpida na grandeza do profeta e na majestade do pensamento, como o brasileiro que maior obra doutrinária realizou para a sua pátria, que nele não teve o agitador estéril, o retórico, o demagogo, o paralogista, senão o semeador do bem e o realizador fecundo, o missionário da paz e o sustentador da ordem, o apóstolo do direito e o antessignano da igualdade jurídica das nações.
Tão extenso fora o campo das suas lidas e fainas; em tantas províncias da sabedoria fora o primeiro; de tantas coisas tratara e em tantas cuidara que, dir-se-á, nenhum assunto importante, quer político, econômico ou financeiro; jurídico, internacional ou lingüístico; de ensino, de ética ou estética, dele deixou de receber soluções, que para logo serviam a inspirar governos e estadistas, legisladores e economistas, tribunais e juízes, juristas e advogados, professores e filólogos, educadores e periodistas. A sua palavra tornara-se oracular: “Rui locutus est, causa finita est”, em paráfrase, escreveu alguém, traduzindo uma verdade.
Nem espaço, nem tempo me sobrará, nos limites desta oração, para trazer-vos a síntese do quanto, no decurso de cinqüenta e quatro anos, produziu, ainda que puséssemos a mira em só considerar o que mais acentuadamente lhe fixasse os lineamentos e o relevo literário. Quase todos os assuntos versou a sua pena e, numa visão de milagre, surge-nos centuplicando aspectos: jornalista, poeta, orador e parlamentar; advogado, jurista, legislador e financista; diplomata, moralista, candidato e sociólogo; crítico filólogo, pedagogista e tradutor.
Se a imaginação e a fecundidade criadoras são os caracteres do gênio, em tudo o que lavrou e construiu, insculpiu e cinzelou, juntas avultam a abundância e a eloqüência, unidas sobressaem a fertilidade e a beleza.
Podemos aferir-lhe a obra pelos traços de luz divergentes que, partindo da sua mente para a multiplicidade dos conhecimentos, se refrangem numa vasta e fecunda atuação, a qual se espraia na amplitude sem perder a unidade característica de, no conjunto, ser inconfundível criação estética, levantada ao maior fastígio do ideal. O pensamento, na sua exteriorização, atinge a formosura suprema, e na harmonia com o poder da expressão está a luminosidade do estilista, em quem há páginas que não são ultrapassadas pelos mais perfeitos artistas da palavra, chamem-se Demóstenes, Cícero ou Tácito; Chateaubriand, Hugo ou Castelar; Vieira, Mont’Alverne ou Latino.
Lutam os escritores com a falta de correspondência entre o trabalho de elaboração mental, infinitamente acelerado, e a faculdade de expressar-se, em regra, retardada e perturbada no tumulto refletido das idéias. Em Rui, porém, era quase miraculosa a facilidade de falar e escrever.
O seu espírito vivera “continuamente em busca de um ideal”, que ele confessara nunca ter chegado a divisar, senão “muito ao longe, como esperança que se esbate num sonho de realidade”.
Com a íntima convicção do verdadeiro crente é que se debruçava na torrente da vida “para observar-lhe os destinos ignorados”.
“Na cerração que os encobre”, escutai-o, “há clarões grandes, que rasgam os espaços do mundo moral, e nos deixam ver, além das fronteiras das nossas desilusões, nos longes mais remotos do nosso descortino, os espigões de serra do futuro, doirados pelo sol de promessas divinas. Surpreendido, então, nessas abertas de luz, o homem, reconciliando-se com a fé, que se lhe esmorecia, sente-se ajoelhado aos céus, no fundo misterioso de si mesmo...”
Entreabria-se-lhe assim, na suavidade do culto interior, a fé ardente, na sua expressão mais alta: para Deus é que se voltava com o mais profundo sentimento religioso.
Imaginação, fecundidade, poder verbal, ideal e crença foram as grandes forças que trabalharam aquela organização privilegiada. E daí a estatura do jornalista, a grandeza do causídico, o insuperável do tribuno, o assombro do candidato e o Fídias da palavra entre os escritores; ou o próprio gênio, através do evolver dos séculos, resumindo, nas mais arrojadas manifestações, inúmeras daquelas virtudes antigas que inspiraram a Plutarco a galeria imortal dos seus varões.
Bastaria vos lembrásseis que de Sólon e Licurgo teve a larga visão no legislar; de Publícola, a resistência contra a tirania; de Péricles, a dignidade do proceder e a grandeza d’alma; de Marcelo, a coragem cívica; de Catão, aquele saber e utilidade nas orações do Senado; e de Demócrito, a mesma doçura e humanidade depois do triunfo, porque em Rui como naquele varão de Plutarco havia o horror da “vitória que degola os vencidos”.
O que de César escrevera Salústio pode-se-lhe aplicar:
“Grande pelos seus benefícios e pela sua munificência; pela afabilidade e clemência se ilustrara, dando, socorrendo e perdoando, glória alcançou; (Cesar dando, sublevando, ignoscendo... gloriam adeptus est); era o refúgio dos perseguidos, e tinha por sistema trabalhar, velar..., não denegar, coisa digna de conceder-se”.
Se César para si só quisera coroas e honras marciais, por exemplo “um grande comando, um exército, uma nova guerra”, a fim de que, por inteiro, se lhe patenteasse todo o valor ou gênio – Rui, ambicionando o poder, no posto de mais árduos sacrifícios, que é pelourinho, só desejara, devemos crer, com a afirmação da liberdade e da ordem, pôr a grandeza do seu saber a serviço da sua nação.
Num país onde o censo da elegibilidade faz que se colham os triunfos dos sufrágios na teia urdida pela lógica e sentimentos que radicam a política do poder pessoal, a livre sanção das urnas é ainda virtude insólita.
Ninguém, no entanto, mais talhado para encaminhar-nos os destinos do que o homem que, no dizer de Coelho Neto, sustentou nos ombros, ele só, toda uma pátria, levantando-a tão alto que o mundo todo a vê e admira.
Envaidecem-nos tais confrontos, porque eles só cabem aos predestinados, a exemplo do compatriota abnegado, a quem se ajusta o diadema com que Tácito circundara a fronte de Júlio Agrícola: “Tudo... quanto nele nos maravilhou, subsiste e subsistirá no pensamento dos homens, na série dos tempos e na recordação das coisas...”
Se no reconhecer ao vosso confrade, como estou a fazer, tantos cabedais e tamanhas virtudes há exageração, não é minha só, porque consenso quase universal é que nunca ninguém, entre nós, subiu mais alto que aquele que chegou a ser o orgulho e o ídolo dos brasileiros.
Fácil é, portanto, Senhores Acadêmicos, sentirdes a angústia que me oprimiria, se desta tribuna, aonde me trouxeram os vossos generosos e reiterados sufrágios, tivesse eu de descer para ocupar, substituindo-o, a cadeira em que se ele assentou.
Não; não me elegestes para substituir a Rui Barbosa.
Influem sem dúvida as eleições acadêmicas certas relações ou alianças; mas o que nelas realmente ocorre é um seguir-se, um vir depois, ou melhor, uma perpetuação sucessiva de nomes, enlaçados apenas na solidariedade espiritual do culto e amor das letras e da língua. A liberdade de escolha é sempre o que se nos depara nas instituições literárias de organização eletiva, não raro inspirada na equivalência paradoxal dos contrastes e dos extremos. Nem sempre os resultados correspondem, como em tudo sói acontecer, à justa conformidade de valores, que se quisera fosse o critério inspirativo; mas nem por isso deixam de ajustar-se a causas preponderantes, a que se não furta nenhuma atuação entre homens.
*  *  *
Tendes em mim um caso que vos será lícito incluirdes entre os daquela equivalência; mas cabe-me obtemperar: se a morte, ao ceifar de vidas entre as vossas fileiras, impusesse a afinidade ou igualdade de virtudes e talentos por norma invariável de vossas preferências – que gênio poderia restituir àquela cadeira o brilho da luz que se nela extinguiu? Quem lograria fixar-lhe os clarões da eloqüência que dela irradiou?
Ligam-me ao meu antecessor, além dos sentimentos de veneração, os laços daquela solidariedade espiritual no culto do idioma, do mesmo modo que se lhe afeiçoam quantos à língua materna testificam devotamento e amor.
É possível que nem uma escolha houvésseis até agora feito, sem que vos tivésseis inspirado em determinadas relações. É possível que, também, quando escolhestes a Osvaldo Cruz para sucessor de Raimundo Correia, ou o bispo de Mariana para suceder a Alcindo Guanabara, pudesse ser discutida a existência de quaisquer semelhanças intelectuais. Porventura, porém, na obra comum do engrandecimento do país e do seu patrimônio mental, não se unem e completam a ação beneditina do sacerdote com a ação tumultuária do jornalista, ou a grandeza daquele poeta com a estatura daquele sábio?
Assim o entendestes e assim o deliberastes.
Não se obstinou, por outro lado, o vosso escolher no só critério literário das obras de imaginação; ou de mera fantasia. Não quisestes empunhar o fantascópio. E por isso não desconhecestes, antes o proclamastes, o merecimento dos trabalhos de Francisco de Castro, de Jaceguai, de Lafayette, de Pedro Lessa e de Rio Branco, e não parece que obras de ficção sejam as Efemérides, as Dissertações e Polêmicas, o Direito da Família, a Guerra do Paraguai e a Clínica Propedêutica. É que não compreenderíeis a Academia, sem que aqui luzissem aqueles altíssimos engenhos, e deixasse este recinto de encher-se de nomes tão cobertos de benemerência e glória.
Não fostes insensíveis talvez à referência honrosa ao meu nome aqui feita, no seu discurso de recepção, por um dos vossos mais brilhantes confrades, crítico arguto e severo, em cuja pena a paixão com que olha homens e livros não lhe prejudica a independência; e, sem embargo do velho princípio dos extremos, bebido nos primórdios da filosofia clássica, entre os que, dentro de uma mesma ordem, distam um do outro o mais possível, fostes buscar-me, isto é, trazer o último para seguir-se ao primeiro, o menor para vir depois do maior dos escritores, dando por sucessor do advogado-rei o menor dos súbditos do dever profissional.
Mas, Senhores, direi com Castilho: “Vós sois a Academia e sem dúvida estais pedindo conta das suas obras.”
*  *  *
Foi a infância de Rui como todas as infâncias que se entreabrem e transcorrem nos lares felizes.
A sua educação, fruto de severa disciplina, deram-lha, esmerada e completa, os progenitores, presidindo-lhe toda a fase do curso preparatório, quer o de adaptação às disciplinas secundárias, quer o de adaptação às matérias superiores, o próprio pai, o Dr. João José Barbosa de Oliveira, humanista provecto, espírito nutrido de larga cultura, e “na província a maior cabeça da sua época, o orador mais perfeito, distinguindo-se, ao mesmo tempo, como um caráter de limpidez e inflexibilidade adamantinas” (são palavras do filho).
Forma a boa educação almas austeras e puras. E Rui poderia repetir o que confessara Marco Aurélio: “Meu pai ensinou-me a não ter nada de cobarde, nem de efeminado; minha mãe a evitar o pensamento do mal... a ser benfazejo, a preferir a verdade a tudo”; e ainda acrescentar: “amei as crianças e fui amigo das flores.”
Aos quinze anos concluíra, perfeitamente habilitado, o estudo das humanidades, não com a preparação vulgar do comum dos alunos, mas com a madureza capaz de dar-lhe autoridade magistral. Ele próprio o confirma:
“Estudante pertinaz e incansável, estava eu, em fins de 1864, aos meus quinze anos de idade, habilitado para a matrícula no Recife, com atestados como o do engenheiro Silva Pereira, grande matemático, rival outrora do primeiro Rio Branco nos bancos acadêmicos, que me declarara capaz de ‘ensinar matemáticas elementares’, e o de fr. Antônio da Virgem Maria Itaparica, sábio filósofo daqueles dias, que testificava achar-se o seu jovem discípulo em condições de ensinar ‘filosofia racional e moral’.”
Era a Bahia nessa época, e em todos os tempos, viveiro de inteligências aprimoradas e de estadistas de renome, centro de grandes mestres, tribuna da eloqüência, e região ubérrima de talentos predestinados; e nesse meio e nesse ambiente foi que madrugou aquela criança.
“Esse menino de cinco anos de idade”, atesta o velho professor Ibirapitanga, “é o maior talento que conheço em trinta anos de magistério; em quinze dias fez a análise gramatical, distinguiu as diferentes partes da oração e conjugou todos os verbos regulares.”
Causou isso assombro a mestres e condiscípulos. Estando ainda a cursar o Ginásio Baiano, dirigido pelo Dr. Abílio Borges, depois barão de Macaúbas, ensaiou os primeiros vôos tribunícios. Informa um dos seus biógrafos que “Contando apenas onze anos, por ocasião de uma festa literária ali realizada, pronunciou um discurso tão sentencioso e cheio de lindas imagens, que seu pai, radiante de alegria, inquiriu do diretor do colégio: – Você não colaborou neste discurso do Rui? – A mesma pergunta lhe ia eu fazer, retorquiu-lhe Macaúbas.
Presente à festa, Muniz Barreto pediu imediatamente a palavra, improvisando estas quadras:
Admira numa criança
O engenho, o critério, o tino
Que possui este menino
Para pensar e dizer.
Não, não me iludo na minha
Bem firmada profecia:
Um gigante da Bahia
Na tribuna ele há de ser.
Concluindo o curso, o barão declarou ao Dr. Barbosa: – “Seu filho nada mais tem a aprender comigo.”
Foi nessa fase inicial que se lhe despertaram os pendores para os estudos clássicos, hauridos nos ensinamentos paternos e dos primeiros mestres Fiúza, Ibirapitanga, Itaparica e Carneiro Ribeiro, nomes veneráveis.
Na mesma inclinação incitou-o ainda uma sociedade de estudos filológicos, então ali existente e da qual fazia parte. E assim, em boa companhia “se imbuiu desse classicismo, que lhe tornou admiráveis as orações, os artigos, as polêmicas” (palavras de um seu biógrafo).
Não deixou jamais de viver no trato dos clássicos, fazendo-se-lhe familiar a língua de Cícero, e penetrando já o halo luminoso e circundante do monumento que ao idioma legou o gênio de Vieira.
Não é, minhas Senhoras e Senhores, sem entranhada comoção, sentindo palpitar-me o amor de filho, neste momento que seria de tanto júbilo e glória para os entes dignos e bons que me trouxeram à vida, que eu vos recordo a gratidão filial que em Rui foi sentimento preponderante.
Em todos os instantes das suas maiores alegrias, ou quando sobre a cabeça do homem político se desencadeavam as descargas dos ódios e ultrajes, do seu amor filial era que fazia o sacrário, onde confiava que as amarguras e injustiças podiam dissipar-se, ou para nele depôr os estemas que lhe coroavam os triunfos.
“Vós, Senhor, me destes progenitores imaculados, que buscaram ensinar-me a não errar os vossos caminhos.”
Como se lhe derrama o suave da linguagem em toadas de harpa eólia, e se lhe desabotoa o sentir à flor dos lábios para envolver no perfume da ternura a imagem dos pais:
“Espírito supremo daquele que me ensinou a sentir o direito e querer a liberdade, espírito severo de meu pai; imagem da bondade e da pureza, carícia do céu na manhã de meus dias, espírito sideral de minha mãe... Vós, autores benignos do meu ser, vós sois a árvore dadivosa, cujos benefícios sobrevivem no reconhecimento, que não murcha.”
Mais tarde, em ímpeto dominador, respondendo a um julgamento iníquo, assim invoca a memória paterna:
Nasci, é verdade, na pobreza; e de tal me honro... Mas se disso me desvaneço, não é menor a honra, para mim, de ter sabido, com o suor de tantas agonias, transformar espinhos em frutos de bênção, fazendo do meu trabalho um manto de respeito para a memória de meu pai. E por isso bem é que a memória do pai venha trazer hoje o testemunho incorruptível dos mortos em favor do filho indignamente difamado.
E, de fato, a memória do pai ficou dignificada “na honra triunfante do filho”.
Embora clínico, e clínico que do labor médico fizera apostolado, na presciência de largos horizontes que se abririam ao futuro do filho, encaminhou-o o Dr. Barbosa para a Faculdade do Recife, na qual iniciou ele em 1866 o curso jurídico, tendo-se transferido em 68 para a de S. Paulo, onde se formou em 70.
Aí, a frase é dele, “o mundo acadêmico e o mundo político penetraram-se mutuamente”. Os seus companheiros de estudos; as vibrações das idéias liberais, que enchiam as cabeças daqueles moços, contra a repercussão dos atos emanados do trono; o golpe que, a pretexto da escolha senatorial de Inhomirim, fora desfechado contra o partido liberal, subindo ao poder o conservador, com o seu ministério chefiado por Itaboraí; a reação que lhe opuseram José Bonifácio, Nabuco de Araújo e Zacarias, este que não podia conformar-se com a iniqüidade da queda do gabinete a que presidia; a irradiação do liberalismo de Saldanha Marinho, na presidência da província – tudo formava ambiente propício para o surgimento do entusiasmo dos moços em prol da idéia democrática, e, especialmente, em favor da redenção da raça infeliz que sofria o guante do cativeiro. Rui, Américo de Campos, Luís Gama, Benedito Otoni, Bernardino Pamplona, Joaquim Nabuco, Ferreira de Meneses, Castro Alves (que geração!) eram o escol da mocidade em cujo peito ecoavam as apóstrofes de José Bonifácio, verberando no parlamento nacional os supostos golpes da coroa.
Foi nesse tempo, em 1869, e em meio assim preparado por sucessos emergentes e incidentes que, no jornal O Radical Paulistano e na loja maçônica A América, despontara jornalista e orador o discípulo que mestre já saíra do colégio do Barão de Macaúbas.
Enunciava o semanário acadêmico, de que fora ele o principal redator, o programa republicano em essência, pois que se embebera nos princípios democráticos. Na tribuna, “ali acidentalmente sob o rito maçônico”, se mostrara o moço, de vinte anos apenas, o precursor da lei relativa aos nascituros de mãe escrava, fincando destarte o primeiro marco da majestosa atuação que, meio século depois, se tornara objeto do culto cívico que celebramos sob aclamações nacionais e ruidosas.
Descerrava-se assim o gênio que na unidade integral do seu eu fora por excelência uma organização política. A unidade consubstancial, trabalhada por fascinações empolgantes, tresdobrou-se na obra imensa realizada pelo jornalista, pelo advogado e pelo orador.
E cheguemos, Senhores Acadêmicos, aos grandes clarões deste espírito que foi maior do que o seu tempo, e deste homem que, consoante as expansões que se lhe rebentaram da alma crivada de desgostos na sua já incurável descrença dos últimos anos, “atravessou uma vida inteira em quase perene combate com o seu meio”, empenhado “num ingrato duelo com o irrealizável”.
*  *  *
Pelo saber quase enciclopédico e mágico prestígio da palavra, pelos problemas de que se ocupou e eficiência que exerceu nos últimos tempos do Império e na República, foi sem contestação o primeiro dos periodistas, em cuja consciência, segundo o sentia, lavrava “o incêndio comunicativo da fé nos princípios, a paixão ignescente do ódio à tirania”. “Pelo temperamento reverencial de su’alma,” definia-se ele, “pelos hábitos metódicos do seu espírito, pelo pendor artístico do seu gosto, nunca foi senão um liberal de molde conservador, um amigo do progresso pela reforma, um incrédulo na eficácia das revoluções.”
Pregoeiro da ordem constitucional, não ocultava que o lábaro que devia acobertar as vivas comunicações do jornalista com a nacionalidade era a majestade semidivina da justiça.
“Todo o bem de que vive um povo civilizado”, sustentou, “se resume neste elemento de confiança que se chama justiça; e não há justiça sem imprensa. A publicidade é o princípio que preserva a justiça de corromper-se. Todo poder que se oculta, perverte-se.”
De ânimo mergulhado nesse credo, desenvolveu-se-lhe a trajetória jornalística numa ascensão de astro que, já assomando formoso e luzente, vai subindo às amplidões de mais intensa irradiação.
Das suas memoráveis campanhas, a primeira foi a do Diário da Bahia, no decênio de 70 a 80. Aí batalhou lutas ingentes pela vitória dos princípios fundamentais do partido liberal, a que se filiara, posto às vezes dele se divorciasse, sobretudo nos momentos em que, “rompendo-lhe o programa, esposava o federalismo como bandeira de ação e reforma imediata”.
Empenhou-se com ardor na defesa de todas as questões que encerravam as “aspirações gerais à liberdade e a democracia”. Da cruzada redentora foi campeão; campeão da eleição direta. Na questão religiosa declarou-se, diante do poder indissimulável do clero, adversário do ultramontanismo, tendo sido, todavia, segundo o seu próprio testemunho, “pelo direito dos prelados católicos ao livre exercício da autoridade espiritual contra o odioso e inepto regalismo da coroa”. Mereceu-lhe estudo especial a lei da conscrição. Imprimiu sempre aos seus editoriais notável força persuasiva e lançava-os com tal esmero artístico, que com a plena maturidade de mestre e estilo inscreveu na história do nosso periodismo aquele decênio de doutrinação liberal.
A segunda campanha foi a de 1889, no Diário de Notícias, cujo programa apontou a republicanizar a monarquia, a bem da sua conservação, porque nutria o vidente político a certeza de que “não há monarquia compatível com a liberdade, se não for essencialmente republicana”. A verdadeira fórmula, indicou-a ele, seria “praticar seriamente o governo parlamentar, e conceder à opinião nacional, inclinada nessa direção de 1831, a grande descentralização: a federalização das províncias, sob o regime parlamentar da monarquia”.
Sobre os troféus da idéia abolicionista soergueu a da federalização, a fim de, com esta, como afinal sucedeu, abismando-se o império atravessado no incidente da questão militar, concorrer para implantar a descentralização, que, na torrente dos acontecimentos, já não podia ficar sob a presidência parlamentar da monarquia, mas sob a direção presidencialista da União Federal. Foi das mais intensas a campanha do Diário, e bem a definiremos se a tomarmos pelo fator mais ostensivo e imediato da revolução de 89. A idéia republicana, com a vitória da abolição, ganhara indisputável terreno. Pugnar naquele momento, segundo o fizera o Diário, pelo pensamento descentralizador, seria aumentar a confusa orientação dos partidos que sustentavam o trono, facilitando que se viesse a concretizar a aspiração dos que combatiam a monarquia. E assim se deu. Quando estampou Rui Barbosa o seu célebre artigo Plano contra a Pátria, o qual na opinião de Benjamin Constant foi o impulso decisivo para a revolução, uma semana depois, na alvorada de 15 de novembro, tremulava vitoriosa a bandeira da República, sem embargo de nunca ter formulado em programa a solução republicana:
Nunca a advoguei: apontei-a à coroa, aos partidos e à nação, como perigo evitável, mediante a reforma federalista. E quando... se verificou tão depressa o meu prognóstico, aceitei o fato como resultado por todos os motivos irrevogável.
Aí tendes, Senhores Acadêmicos, o papel que coube ao vosso glorioso confrade no drama final do Segundo Reinado, perfeitamente idêntico ao que desempenhou Evaristo da Veiga, na terminação do primeiro; e, com ele, a afinidade evidente entre o patrono da grande Cadeira e o seu primeiro ocupante.
Vitoriosa a questão do fato político, não estavam contudo triunfantes os princípios. Feita a República, mais que nunca havia mister do trabalho de preparação. Recrudesceu, por isso, o esforço de Rui, em quem desapareceu o jornalista para surgir o organizador no ministro, no subchefe do governo revolucionário e no autor da Constituição, das leis orgânicas e da sábia lei que separou a Igreja do Estado.1
Em tudo atuou com liberalismo indefectível e larga visão, adquirindo prestígio incontrastável. É Benjamin Constant, o chefe militar, então de maior autoridade moral, quem declara: – “Acompanho cada vez com mais confiança o senhor Rui Barbosa, com quem prefiro errar a acertar com outros.”
Cai sobre a República nascente o golpe de estado de 1892. Floriano Peixoto encarna a reação e, conseqüentemente, o princípio de legalidade. Mas quando ao doutrinador pareceu que o marechal começava de praticar ilegalidades, rasgando as constituições estaduais com a de deposição dos governadores solidários com Deodoro, se insurgiu o nume tutelar da democracia contra o erro da legalidade. Sentiu Rui que a sua velha tribuna seria o posto de onde poderia “pugnar pela Constituição para restabelecê-la, restabelecer a Constituição para conservá-la”. E ei-lo à frente do Jornal do Brasil, em 1893.
Nova cruzada e nova vitória, concretizada no estabelecimento do poder constitucional, engrandecido na austeridade, na pureza e energia do eminentíssimo varão, que foi o primeiro governo civil da República.
Não houve na vida do jornalista a continuidade do tempo, mas a contigüidade dos princípios nunca foi interrompida. A par com a firmeza do esforço a conservação dos mesmos sentimentos. Notai que nele a pertinácia na defesa do liberalismo, da federação, do governo civil e da verdade constitucional se conservou inalterável em todos os tempos.
Em 1898, sob o sugestivo título A Imprensa, fundou a sua nova tribuna, e aí desenvolveu, com igual abnegação patriótica, mais uma das suas fainas de guerreador-profeta, penetrado sempre da fé nos princípios que se lhe antolhavam por úteis e convenientes à nação. Levanta, com prudência, no artigo “Projetos e esperanças”, a idéia do revisionismo. E idéia em que uma vez tivesse meditado para logo adquiria força capaz de resistir aos mais desenfreados choques adversos.
Daí a transformação do apóstolo no lutador, que com a mesma dedicação pleiteava as boas idéias, fortalecendo-as, ungindo-as e purificando-as no espírito da “regeneração, da verdade e da resistência”.
Ainda outra vez reviveu o Diário de Notícias, e de novo ficou assinalado na imprensa do país mais uma fase de evangelização e esplendor.
O civilismo, no seu aspecto de construção doutrinária contra as negações dos princípios fundamentais da democracia e liberdade, é, sem dúvida, a mais levantada e significativa das batalhas que se hão travado na vida política do país. A natureza dos elementos que se nele empenharam, dão a extensão da notável cruzada, na qual, como em nenhuma outra, participara o sentimento cívico do povo, excetuado talvez o momento histórico em que, esboçando-se já a consciência da nacionalidade, o amor nativo impôs ao General Avílez o embarque das suas tropas impertinentes, e outras coisas mais soube exigir em prol do advento da independência.
Duas temerosas forças, de quando em quando divorciadas para o infortúnio dos povos em formação, travando-se das suas armas – a palavra e a espada – procuram devorar-se, tendo ambas por árbitro a uma personalidade de influência ocasional e efêmera, como, entre nós, costuma ser toda força de índole política. O poder civil luta contra o poder militar, diante de um pretório, que impunha o prestígio soberano e irrecorrível das decisões eleitorais.
Três nomes de brasileiros ilustres, infelizmente já mergulhados na noite eterna, representam naquele instante as aspirações exaltadas dos elementos prosélitos militantes.
É cedo para o exame sereno dos processos e resultados que do conflito advieram para a regeneração dos nossos costumes. Todavia pode afirmar-se que com Rui estava a nação. Mas se este juízo que, conforme vedes, é contemporâneo, está sujeito a restrições, uma verdade permanecerá de pé, hoje, amanhã e sempre: naquela luta memorável, alteia-se, grandiosa e estupenda, a figura de um lutador com proporções descompassadas.
Debaixo de tempestades chamejantes, de ventos que bramem e de raios que, riscando a profundeza do espaço, estalam em descargas aterradoras, tendo no alto a natureza a tremer no furor dos elementos desencadeados, e ouvindo, em torno, o troar dos canhões, “os trovões de artilharia”, o metralhar das máquinas, o fuzilar das armas e o brandir das espadas – imaginai, Senhores, assim “nessa atmosfera eletrizada”, diante do espantoso desse bombardeio geral de céus e terra, um só homem a lutar, lutar sempre, lutar heroicamente, imperturbável, erecto, pequenino e imenso, cada vez mais abraçado à “onipotência incompressível” da sua palavra, que respondendo a tudo – tremebrilha, chispa e fagulha, lampeja, atroa e deflagra, fere, flagela e fulmina, – e aí tendes a Rui no civilismo.
“Um lutador não é um apóstolo”, sentenciou o mestre. “Exigir”, sustentou ele, referindo-se a Pombal, “exigir, nas condições de um destino tão excepcional, a benevolência filosófica de Voltaire casada a essa exuberância de energia; a esse temperamento de combate que caracteriza aquele extraordinário extirpador de abusos seculares, é converter em possibilidade o mais quimérico dos entes de razão. Um lutador não é um apóstolo.” (M. de Pombal, 39).
Toda obra de Rui, versasse assunto que versasse, é, no entanto, a afirmação de que na alma do homem que viveu a pregar a fé nas doutrinas, dela se não apartou nunca a do combatente que se coroava no sacrifício das realizações.
Não seria dado, portanto, desconhecer a missão apostólica do jornalista, que permaneceu sempre na fileira da vanguarda, de pena transformada em clava, e de onde só se recolhia abençoado dos hinos de triunfo.
Essa, Senhores Acadêmicos, a vida de Rui no jornalismo: “vida inteira de ação, peleja, ou apostolado.”
*  *  *
No tirocínio da profissão do advogado, que tanto ilustrou, divisa-se também e também se sente a rija fibra do combatente a palpitar nos monumentos de doutrinação jurídica, que lhe inscreveram o nome, insigne entre os maiores, nessa ordem onde fulgem Nabuco, Lafayette, Teixeira de Freitas, Carlos de Carvalho, Ouro Preto, José Higino, Clóvis, Carvalho de Mendonça, Eduardo Espínola, Mendes Pimentel, Alfredo Bernardes...
No profissional tendes ainda o lutador, ou, melhor, pressente-se a fascinação do político. Penetrai-lhe a multidão de pareceres, de razões, de petições, de habeas corpus e demais trabalhos forenses, e sentireis que o que aí mais vibra é o sentimento, a índole, a alma daquela atração irresistível, o que, contudo, não inibira o homem do direito de, no direito, perpetuar-se em maravilhas de sabedoria.
A desafiar os tempos – aí está a sua doutrina acerca do conceito extensivo do habeas corpus, que nenhuma legislação consagra e pratica com maior perfeição; aí correm os seus ensinamentos sobre o estado de sítio; aí tendes um tratado de matéria constitucional contido no Direito do Amazonas ao Acre Setentrional, nos Atos Inconstitucionais do Congresso e do Executivo, na Anistia Inversa, na interpretação do Art. 6.o; aí está a Posse dos direitos pessoais; aí se nos deparam os seus vastos estudos referentes às questões de limites; aí está, enfim, essa Constituição republicana, fruto das suas prédicas, do seu liberalismo e da sua cultura.
*  *  *
Aos primeiros albores da adolescência infiltrara-se-lhe na alma a paixão política, que havia de empolgá-lo por todo o transcurso da vida.
O seu espírito, que se formara nas idéias do constitucionalismo inglês e bebera na infância os princípios da veracidade e da independência, não se voltaria senão para a política com a influição soberana do seu contato; para a política que disciplina, dirige, vigora e felicita povos; institui ao governo normas sábias, retas, prudentes e benéficas; ampara e assegura a administração incontaminada e incorruptível da justiça; da política que encaminha e equilibra os Estados, evitando-lhes os antagonismos.
“Meu pai”, escreveu ele, “meu pai que era um liberal de educação política essencialmente inglesa, imprimiu as suas simpatias na trama do meu tecido moral... Destarte me aparelhava para a política... Educado nessa escola de sinceridade moral e liberdade constitucional... entrei em cheio na vida pública, levando a ela no meu seio, como base de tudo, a persuasão de que os princípios eram verdades, as ligações políticas obrigações, as idéias deveres, os programas pactos de honra, e de que na palavra humana, empregada no serviço do bem, reside uma força irresistível, em sendo perseverante e desinteressada.”
Atentai nessa sua persuasão de que na palavra humana reside força irresistível.
É que com ele nasceu essa faculdade, o maior dos seus dons, a qual ao calor daquela paixão se sublimara a ponto de chegar a ser o que foi: o mais alto poder de expressão, entremesclado às maravilhas de eloqüência quase sobre-humana.
Conjugadas a fascinação política e a virtude da palavra, formaram ambas o homem público que, consagrando-se ao labor das grandes construções, criou para o seu país a escola política do liberalismo e da verdade; da intransigência diante do erro; da reação contra a prepotência, contra a dissimulação, contra a fraqueza; a escola do respeito, da polidez e da competência; a da construção da ordem civil e da eficiência do direito como veículo das grandes conquistas; a escola, em suma, da política que transpôs as fronteiras continentais e internacionais para, penetrando o contubérnio das nações, doutrinar e vencer em Haia, evangelizar em Buenos Aires, fazer febricitar de comoção a alma da Bélgica, pesar nas grandes decisões da Conferência da Paz, e tornar mais fortes os laços da solidariedade que nos une às gloriosas irmãs sul-americanas, ou sejam os nossos queridos amigos paraguaios, uruguaios, argentinos e chilenos, ou sejam as dignas nações do Equador, Bolívia, Venezuela, Colômbia e Peru.
Vencer em Haia! Bastaria esse feito, que enche um século; bastaria que daquele “comício imenso”, onde se congregaram quarenta e duas sumidades mundiais, tivesse Rui Barbosa saído aureolado com a vitória moral do princípio da igualdade soberana das nações, para envolver-se-lhe o nome na imortalidade!
Escutai-lhe o depoimento do que para o mundo e, especialmente, para América, significou a grandiosa conquista da sua consciência jurídica:
Da resistência do Brasil com a unanimidade do apoio das nações americanas resultou o advento da América triunfante nas serenas regiões do direito. Tal, na sua síntese evidente, a lição do drama de Haia, que a intuição das suas testemunhas mais diretas imediatamente classificou, sem contestadores, como o novo descobrimento político, a relevação do peso deste grande fator, até então desconhecido, na vida internacional.
Que brasileiro já houve que fizesse tanto? Quem possuiu jamais tamanho prestígio, ação mais radiante e maior benemerência?
Serei enfático? Perdoai-me.
Estarei de olhos turvos, no altar da minha admiração por esse compatriota?
O deslumbramento é o que me causa a sua altura. E não é estranho que a intensidade da luz turve a vista e deslumbre o olhar, reduzindo ou ampliando as proporções objetivas. Dir-vos-ei, no entanto, se é que a minha visão vacila, que não só a mim é que porventura a névoa encobre ou a luminosidade ofusca.
Toda a nação brasileira, ou quase toda, nunca deixou de seguir, aplaudir, endeusar esse filho, essa vida, esse apóstolo, com extraordinárias expansões de admiração e respeito. Não há ênfase em referir-vos que ninguém nesta terra recebeu ovações iguais nem alvo foi de tantas e tão entusiásticas glorificações populares. Nem mesmo os grandes cabos de guerra que, trazendo ao peito distinções marciais, conduziram por entre hinos de vitória a bandeira da nação, receberam mais altas honras, consagrações públicas mais solenes e apoteoses mais soberbas.
E eram-lhe assaz compensadoras essas efusões do sentimento cívico nacional.
Um dia visitei-o em Petrópolis. Acolheu-me com a bondade de sempre, e, como se nada lhe tivesse acontecido, com a serenidade que transparecia do profundo do seu olhar, disse-me: – “O Presidente da República acaba de decretar a intervenção federal na Bahia, a fim de manter o governador. Aí está a solução da campanha de patriotismo e libertação em que me envolvi. Vou endereçar ao chefe de Estado esta carta, que lhe passo a ler.”
Ouvi a leitura da vibrante contestação ao ato presidencial, e ainda uma vez tive a visão da alteza de tão privilegiado espírito, e espírito de energia tão inflexível. Ousei dirigir-lhe palavras referentes à impressão produzida na opinião pública pela formidável cruzada política. “Educa-nos todos os dias V. Ex. na verdadeira escola da democracia”, afirmei-lhe eu. “Sim, meu amigo, respondeu-me, tenho certeza de que o poder entre nós é detestado, mas a oposição é estéril. Isso, contudo, não me derriba o ânimo, porque sinto que o povo me ouve no interesse porque essa nacionalidade não se arruíne pela desunião, pela descrença e pela injustiça, e tudo já o disse por escrito.”
Sim, sabemos todos que toda vez que ele falava da tribuna popular, orando ao povo “rosto a rosto”, tinha a certeza de que a influição comunicativa do seu verbo ungia, corrigia e convencia a consciência das multidões.
“Em torno do homem que fala aos seus concidadãos”, dizia-o ele, “as multidões engrossam como os mares ao redor do veleiro, que, de crista em crista, se vai agüentando nas águas agitadas. A eloqüência aí é a da concisão das vozes de manobra entre os assovios do vento, ou a dos clarões do farol entre os cabeços dos abrolhos.”
Li, em boa fonte, Senhores, que a persistência do direito contra a obstinação da lei é a origem dos males sociais. A constante desarmonia entre o princípio e a aplicação gera as perturbações e as lutas.
Em regra, a lei não traduz o direito: desvirtua-o. A lei, é certo, “decorre do direito”, mas vede que “a lei procede do direito” “como o rio da sua origem”, recurvado em várias direções e “apanhando as impurezas das margens”. É que por homens elaborada, a lei terá necessariamente as imperfeições da falibilidade humana.
Alta expressão do direito é a liberdade; no entanto a lei que a traduz é, não raras vezes, a da proscrição, ou a do jugo sob qualquer das suas formas.
Mais alta expressão ainda da ordem jurídica é a inviolabilidade da vida, mas a lei criou a guilhotina e, não raro, de outro aspecto, abre as portas das penitenciárias para a evasão dos matadores.
A ordem pública, além de condição, é expressão do direito, mas a lei se detém diante do problema da intervenção do poder central na vida dos Estados, de modo que a própria intervenção sirva de meio, ou pretexto de perturbar a ordem.
Escreveu Victor Hugo que lhe impunha a consciência, nas suas funções de legislador, a confrontação permanente e perpétua da lei que os homens fazem com a lei que faz os homens.
A vida de Rui exauriu-se nesse esforço de pregar a expressão veraz do direito na fidelidade incorruptível da lei; e no alto de todas as tribunas que iluminou, o pensamento que o guiara fora sempre o Pro jure contra legem.
Essa, Senhores, a flâmula do orador miraculoso que agitou e dirigiu seus concidadãos; profligou a desvirtuação da verdade; incentivou aspirações e fortaleceu ânimos; amparou os fracos, animou a infância; flagelou costumes, adversou impatriotas, enfrentou potentados, defendeu adversários; derrocou situações, e levantou o sentimento brasileiro até os hinos ao patriotismo, à democracia, à crença e à beleza; orador em quem a fecundidade e imaginação, unidas ao ardor das paixões e à magnitude da coragem cívica, davam a impressão de que o seu gênio, no dizer de Plutarco, nem era de homem nem de Deus, mas participava de uma e outra natureza; orador que a tal eminência subiu que, quando falava na rua de São Clemente, a sua palavra era ouvida em Berlim, Londres e Paris, e por toda parte onde pudessem ser escutados os ecos dos grandes pensamentos.
Sem embargo das negações dos dissidentes, pois Rui os teve, díscolos por temperamento, partidarismo, ou porque lhe não conhecessem a obra, (e cumpre dizer que não menos do que a injustiça assim também a prevenção irreverente se extremaram), ser-me-á lícito escrever esta verdade: maior orador do que ele não possuiu o Brasil.
As suas proporções, pelas pompas da eloqüência e elevação do pensamento, tornaram certo que, maior do que o orador parlamentar só o orador acadêmico; maior do que o orador da tribuna judiciária, só o orador das candidaturas presidenciais; maior que o orador de Haia, só o orador de Buenos Aires.
À semelhança de Cícero, foi Rui tribuno, jurisconsulto e gramático; escritor e analista como Tácito; homem de estado e orador como Demóstenes.
Eu não me animaria a inculcar-vos que o varão brasileiro, o seu estilo quase sobrenatural, se mostrara maior do que Tácito e, no Senado da República, a sua figura ultrapassasse a do príncipe dos oradores romanos, nem transcendesse os “ecos da palavra demostênica”.
Mas, Senhores Acadêmicos, se as tradições de um passado tão distante, confrontadas com as opulências da cultura contemporânea, podem ensejar, sem despropósitos, comparações que nos honram, eu vos recordaria que a plasticidade da eloqüência do grande Rui se retratou em formas que, sublimando-lhe o verbo, o fizeram rival de Demóstenes, mais rico do que Tácito e, pela força da idéia, de ação mais penetrante na consciência coletiva do que Cícero.
Não desertareis a observação de que o seu estilo teve a magnificência e concisão do orador grego, “que falava à razão de preferência às paixões, com gravidade, sem afetação, austero e meditativo”; possuiu a eloqüência serena da verdade, a doçura da harmonia, a beleza da simplicidade do estilo de Tácito; e revestiu-se das modalidades invectivas das catilinárias, sem a exclusão do perluxo, à feição do de Cícero.
Se se buscasse em Tácito o retrato que traçou da palavra de Cícero, oratória que se lhe afigura edifício de arquitetura grosseira, de paredes sólidas e duráveis, mas sem brilho nem polimento, e tribuno que do seu jus verrinum e do eterno esse videatur, nos seus discursos, só de três em três frases é que dava lugar a um pensamento, sentiríeis que não aventurei apenas simples voto pessoal para engrandecer na hipérbole a figura formidável do civilismo. Todavia, não deixará de haver quem descubra na vida e obra do Cícero brasileiro aquilo que admiravelmente salienta Boissier na obra e vida do acusador de Catilina: certa insaciável vaidade, certa mobilidade de impressões, certa facilidade a deixar-se prender e dominar pelos acontecimentos, e ainda aquela maravilhosa faculdade de fazer-se o espectador do que ele próprio referia e narrava.
O copioso desenvolvimento que costumava dar às orações fruto era do seu saber vastíssimo, enriquecido da aptidão de levar a análise até aos excessos do meticuloso.
Procurava o bem, o mal e o belo na alma das coisas e dos fatos para, louvando, ferindo ou cantando, abraçar-se ao ideal, que ele dizia se não define, mas “se enxerga por clareiras que dão para o infinito: o amor abnegado; a fé cristã; o sacrifício pelos interesses superiores da humanidade; a compreensão da vida no plano divino da virtude; tudo que alheia o homem da própria individualidade, e o eleva, o multiplica, o agiganta, por uma contemplação pura, uma resolução heróica, ou uma aspiração sublime”.
O mesmo doutrinador que discursava durante horas seguidas, – duas, quatro e, às vezes, mais, em dias sucessivos, – possuía o condão da síntese capaz de resumir numa frase uma doutrina, numa apóstrofe um julgamento, um programa numa sentença e numa palavra uma individualidade. Numa só imagem encerrava páginas de psicologia. Vede O estoiro da boiada; vede o Caranguejeiro; O perdigueiro e o Tatuaçu; vede o Chantecler dos potreiros; As aves palreiras e guinchantes; vede a Múmia de Sesóstris; A couve e o carvalho ...
Nesses quadros, debuxos e epigramas, lançados e pintados através de uma burilada, com as farpas da ironia e estiletes cruéis, não se livrou aquela palavra de mergulhar no fel das paixões para mostrar que, entre sublime e divina, não deixava de ser humana.
Nem era de esperar que disso se apartasse um homem que viveu meio século a lutar e sofrer, vencer e ser vencido, dizendo verdades e semeando idéias, com a vigilância do “piloto que mostra os escolhos”.
Pouco menos de dois anos antes que se lhe apagasse a vida, a sua consciência elevara-se à nobreza destas palavras:
Ainda hoje estou na persuasão de que, em geral, fui justo. Pelo menos, sempre trabalhei pelo ser. Mas, onde quer que, contra a vontade, me tenha sucedido a desgraça de pecar contra as maiores de todas as leis, as leis da justiça, e da caridade bem entendidas, perdoem-me os agravados, como Deus me perdoará! Não pequei de propósito: terei pecado por erro, ignorância, ocasião, falibilidade incurável dos juízos humanos. Devo confessar, e confesso que, verdadeiro sempre quanto aos fatos..., nem sempre no apreciar dos indivíduos consegui acertar.
Ainda, em colóquio, de suavíssima ressonância ática com os moços de S. Paulo, abrindo-lhes, num ato de fé, o livro da sua vida, reafirmou a sinceridade dos seus sentimentos:
Deus me é testemunha de que tudo tenho perdoado... Assim me perdoem, também, os a quem tenho agravado, os com quem houver sido injusto, violento, intolerante, maligno ou descaridoso.
Aí está o exemplo edificante de uma velhice excelsa, envolvida nas siderações da verdade, mas amadurecida no fragor das lutas, a mostrar à mocidade o caminho da mansuetude e do perdão.
Nas vibrações da sua palavra – e assim na oratória de todos os grandes tribunos – esfusiava a ironia, a destilar-se em trocadilhos e paronomásias. Ironia fina e sutil, amarga e penetrante, mas respeitosa e polida. Nunca resvalou a insulto, ainda nos momentos em que, defrontando inimigos e detratores, sentia mister de responder a eles no tom explosivo em que Catulo, o satírico, revidara ao advogado que, em pleno debate, lhe inquirira “porque ele, quando discursava, ladrava tão alto”,2 ou ainda quando, ao calor das grandes causas, a palavra lhe saía, consoante o mostrara, “rechinando, esbraseando, chispando como o metal candente dos seios da fornalha”.
Na do orador alvorejou em 1869 a alma do abolicionista. Aos vinte anos, realizou a sua primeira defesa do escravo contra o senhor. Em 1871 estreou-se na tribuna judiciária; em 74, ainda na tribuna popular, em favor da eleição direta, assunto de que aos vinte e cinco anos já se preocupava. Em 76 é o conferencista a propugnar a liberdade religiosa; no ano seguinte, a sua eloqüência literária derrama-se sobre a memória de Alexandre Herculano. O orador parlamentar surge em 78, no Legislativo Baiano, em prol da liberdade comercial e, no ano imediato, no parlamento nacional, respondendo triunfalmente a Silveira Martins.3
Sem a pretensão de com acerto distinguir, não me furto, todavia, ao impulso de uma referência, na qual se nos mostra o titão a escalar, em maravilhosa ascensão, os cimos até aonde parece ser capaz de chegar o humano poder da eloqüência.
Aí tendes, entre o Discurso de 79, em resposta a Silveira Martins, e a Oração de Buenos Aires, por traços mais luminosos da trajetória do orador:
– Discurso, no Teatro S. João, na Bahia, resposta a Manuel Vitorino;
– Conferências abolicionistas, ali proferidas em 24 e 26 de maio de 1897;
– Elogios de Castro Alves, Pombal, José Bonifácio e Osvaldo Cruz;
– Discurso, no Senado, à porfia com o deputado Zama, modelo de réplica parlamentar;
– Orações de paraninfo em Friburgo e São Paulo;
–  Discurso, no banquete do Jornal do Commercio;
–  Discurso a Machado de Assis;
–  Discurso no Instituto dos Advogados;
–  Conferência, no Liceu de Artes e Ofícios;
–  Orações, no Supremo Tribunal, contra o bombardeio na Bahia e as de habeas corpus em favor do cônego Galrão, e do doutor Aurélio Viana;
–  Fala às andorinhas de Campinas;
–  Conferências da cruzada civilista;
–  Orações, na campanha eleitoral da Bahia.
Os discursos parlamentares, de que servem de modelo os que constituem o livro Finanças e política, são talvez hoje inumeráveis.
Sentindo com verdade a eloqüência de que fora encarnação, ninguém melhor do que ele poderia traduzir o que ela é:
É o privilégio divino da palavra na sua expressão mais fina, mais natural, mais bela. É a evidência alada, a inspiração resplandecente, a convicção eletrizada, a verdade em erupção, em cachoeira ou em oceano, com as transparências da onda, as surpresas do vento, os reflexos do céu, os descortinos do horizonte.
Neste trecho retrata-se: esta eloqüência é o orador, orador que, pela irradiante influição artística, e força oracular da linguagem, era, de plano, e à semelhança de Cícero, no dizer de Fernando de Azevedo, primoroso escritor, um vulto “que tinha as grandes dimensões para o Capitólio”.
*  *  *
As qualidades que lhe enriqueciam a linguagem falada, por maneira tal se ajustam às da língua escrita, que, em se pintando assim na eloqüência, ressurge, ao mesmo tempo e nas mesmas linhas, perfeito e completo, o escritor, com aquele privilégio divino da palavra no estilista hierático, inimitável e soberbo.
A sua linguagem é gama surpreendente dos segredos e riquezas idiomáticas, mimo de elocução culta, polida, abundante e clara; exemplar na correção, copiosíssima no vocabulário; fluente e harmoniosa, cheia de aticismo e plasticidade estética.
Na gradação da luz, que ora é claridade branda e suave; ora, clarão, ou fusil de relâmpago, ofuscante e rápido; ora esplendor, que é luz em plenitude, o seu estilo dotado destas tonalidades radiantes, reflete-lhe as tempestades da vida, o ímpeto das paixões, as quimeras dos sonhos; eleva-se às regiões ideais do belo, envolve-se nas cintilações, brilha, auriluz, e extravasa-se na expressão da sua facúndia arrebatadora.
Tomai, Senhores, as proporções inauditas deste homem, nas múltiplas formas em que se lhe subdividiu a atividade.
Custa a crer que atrás do jornalista que tão largo tempo passou a doutrinar; do batalhador político de tão flagelante e eficiente ação; do parlamentar envolvido em pugnas incessantes; do advogado e jurisconsulto de cujas luzes se não prescindia nos litígios importantes; custa a crer que, atrás de tantas personificações, ainda houvesse lugar e tempo para o escritor, que se não improvisa, mas se faz à custa de vigílias estafantes, áridas investigações e pesados estudos.
E se vos detiverdes no admirável do fato, tereis ainda por detrás do prosador o poligloto e o filólogo, precedidos do gramático.
E não vos surpreenda que lhe chame nome tão suspeito, como, entre nós, é este último.
Prazer ou malícia é fulminar censuras, em fórmulas de sucinta proscrição, a toda a classe dos estudiosos, em regra modestos e simples, que se consagram ao estudo da sistematização dos fatos lingüísticos.
Aos gramáticos costumam reconhecer o papel de guardas impertinentes das complicações do idioma, ainda àqueles que lhe têm dado o cabedal dos seus conhecimentos. É opinião preponderante que são eles quem criam e inventam as dificuldades.
Ora, direis que isso parece um paradoxo de insciência, ou, pelo menos, mau sintoma de obstinação contra o aprendizado essencial da língua, que nenhuma existe sem ter os seus fenômenos e fatos estabelecidos e regulados.
Certo é, porém, que os que nutrem horror aos gramáticos são os que justamente não amam a gramática e, na persuasão de que logram passar sem ela, tanto se lhes dá o escreverem segundo os cânones sintáticos, como o escreverem com desatenções, indiferentes aos solecismos, às impurezas vocabulares e de ouvidos moucos às formas exatas que rutilam a beleza das idéias.
Afirma-se, e é verdade, que a gramática não cria a língua, não tece a linguagem; nem faz o estilo. A língua preexistiu à gramática. Mas, no evolver dos acontecimentos, coube-lhe o papel disciplinador e o ser fonte imprescindível onde primeiro vamos aprender como deve ser praticado o idioma, consoante ao gênio tradicional e à legitimidade da construção, que não deve ficar no livre alvedrio dos fantasistas descuidosos.
Também é verdade que os agrupamentos humanos preexistiram à legislação escrita. Onde, porém, encontrareis grupos de homens social e politicamente organizados, vivendo sem submissão às leis e obediência aos códigos?
Num país, à semelhança do Brasil, onde a cultura filológica se patenteia assaz desenvolvida, não há cabimento para o desapreço iníquo em que são tidos aqueles que, se o quiserem, podem rir-se dos escritores que menosprezam a sua língua.
Infelizmente não sou gramático, nem filólogo sou, e, talvez com razão, e por castigo de o não ser, se me inclua no rol dos últimos. Como quer que seja, sinto o amor do idioma e, por isso, não me é dado deixar de ter para com os seus mestres, os seus paladinos, os seus gramáticos, acatamento e veneração.
Quando vejo que em minha terra é que à língua portuguesa se deparou o maior dos seus escritores, aquele que lhe simboliza o gênio, avulta a minha admiração pelo brasileiro que, já sendo em tudo o maior, chegou ao ponto de condensar um idioma, comum a dois povos tão distanciados pelo espaço quão amigos pelos laços étnicos e pelo coração.
De mim afasto a faculdade de um juízo pessoal, e entrego a missão de sentenciar a quem de direito, a um dos gramáticos primazes, educador emérito e prosador de escol, o professor Carneiro:
Não nos lembra escritor algum, excetuados o padre Antônio Vieira e o fecundo Antônio Feliciano de Castilho, em alguns de seus passos, que escreva e fale com a propriedade com que se exprime este exímio escritor.
Não somente em virtude deste já excepcional predicado, aí acentuado, ascendeu Rui à culminância a que chegou nas letras portuguesas, de aquém e além-mar.
Na exuberância do vocabulário, e no opulentar o léxico com a faculdade inventiva de vozes, dificilmente se lhe apontará outro igual. No farto da sinonímia, luxuriante e donosa, é prosador sem rival. Lede a Esfola da Calúnia, o panegírico de Osvaldo Cruz e os seus editoriais de imprensa, por amostras.
As expressões jorram-lhe sem artifício e têm o cunho autenticamente clássico. Se, às vezes, as repassa o sabor arcaico, dir-se-á que antes é para as impregnar “desse aroma de antiguidade, une certaine fleur d’antiquité, que do hábil emprego das boas locuções antigas se desprende”, segundo ele declarava.
Para Rui o arcaísmo “é um dos segredos da graça e força nos escritores de grande raça, nos estilistas de escola, nos renovadores do gosto literário, nos criadores de obras d’arte duradoiras”.
Não empregava a palavra antiga pelo simples desejo de ostentar estilo clássico, que, no caso, rebuscado e artificioso, não sairia de pena feita e refeita na segurança da vernaculidade.
“Não convertamos em espantalho o nome de arcaísmo”, aconselhava ele. “Todas as gerações assistem ao reabrir de palavra antiquadas, que outra vez, ao influxo de novos tempos, rebentam de seu, espontâneas e belas, sob a pena dos escritores do bom gosto.”
Aliás o emprego do arcaísmo foi de todos os tempos e entre bons escritores. Já os contemporâneos de Salústio lhe exprobravam o hábito sistemático e abusivo do giro da frase antiga e de locuções inusitadas em Roma. Cícero não lhe perdoava a ele a maneira de Lucrécio e a mania de imitar a Catão, o antigo.
Em França de tanto arcaísmo usam ilustres escritores que acabam tendo a linguagem “parasitária, sem graça, sem sabor e sem beleza”.
A exemplo de Vieira, teve Rui a predileção das antíteses para engrandecer a frase e o prazer das repetições para realçar o estilo. É notável, pela superabundância, a adjetivação do delicioso autor das Cartas de Inglaterra. Onde é que Boileau foi descobrir que basta enunciar simplesmente as coisas para as fazer admirar?
É possível que assim seja no idioma francês, língua de índole e construção diversas do português, onde, pelo contrário, o adjetivo exerce função importante, qual a de vigorar a frase, em não sendo inexpressivo, mal ajustado, trivial e impróprio.
Eliminai, por exemplo, da descrição profundamente comovedora do suplício de Dreyfus, no momento em que se passa a cena da degradação militar, aqueles adjetivos, que ali palpitam e tanto avultam a cruel solenidade, e sentireis que o artista soube daqueles epítetos fazer notas vibrantes na harmonia descritiva do episódio trágico, que até nós chegaria descorado, se ali eles não estivessem a pôr em relevo, no grandioso horrível da cerimônia, o horrível pomposo do sofrimento
Mas na língua francesa, como na portuguesa, o adjetivo imprime ao estilo graça, exuberância e força. Aí está Chateaubriand, cuja pena é modelar, e que foi um dos reis do adjetivo, como lhe chamaram; tendes a Lamartine, Victor Hugo e Renan para confirmarem esta observação de um crítico francês: “Os adjetivos são as mais ricas e numerosas palavras da nossa língua. Oferecem recursos infinitos. Representam valores e dão vida às demais palavras.”
Possui mais Rui Barbosa inigualável poder descritivo, manifestado eloqüentemente na associação das vozes e nos segredos do uso verbal.
Reatentai no vigor desta descrição:
Calmaria ainda não vi igual. Não sopra o vento; não gemem as vagas; não murmuram os rios; não cantam as fontes; não ramalham as árvores; não ondeiam as messes; não acenam as flores; não bolem as folhas; não trinam as aves; não zumbem os insetos; não avoejam as borboletas; não se move o ar; a luz não oscila; não se mexem as sombras; a vela não se enfuna; o lago não se increspa; o homem não respira: como que não vive a natureza.
Observou alguém que foi Bossuet quem fez ressaltar, na índole do estilo, a importância dos verbos, máxime dos verbos criados, “que são os que surpreendem pela novidade, pela imagem, pelo sentido e aplicação imprevista”.
Dentro das mais rigorosas normas da derivação vernácula dotou Rui o dicionário brasileiro não só de muitos verbos expressivos e enérgicos, senão ainda de outros inumeráveis vocábulos significativos, formosíssimos e irrecusáveis.4
Pode dizer-se que o estilista matinou já de posse dos singulares cabedais que lhe adornam o escrever.
Se se pretendesse, entretanto, assinalar-lhe a fase em que atingiu mais vigor, correção e excelência, no grau de quase perfeição que é o do escritor sem erros, – não se iludiria quem olhasse as Cartas de Inglaterra como a primeira na série das suas mais acabadas produções. E se não estivesse longe de mim a intenção de fatigar-vos, fácil seria ordenar outras e outras escritas com os primores da língua, desde os pareceres acerca do ensino até os volumes da Queda do Império.
Dir-vos-ei contudo que, se entre as suas produções esparsas e menores, merece distinguida, por modelo de lídima vernaculidade, a Oração aos Moços, na Faculdade de São Paulo, entre os seus livros é a Réplica às Defesas da Redação do Projeto de Código Civil aquele em que o prosador está sobranceiro na plenitude dos seus dons e méritos literários.
Gramática das gramáticas, porque vale por todas, a Réplica é tesouro de riquezas idiomáticas, que as obras congenêres mais consagradas na língua portuguesa não igualam.
É livro-evangelho, na filologia; livro-padrão, na linguagem; livro de oiro, no estilo, e monumento dos monumentos nas letras brasileiras.
*  *  *
Minhas Senhoras e Senhores:
O panegírico do Sr. Conselheiro Rui Barbosa, à altura do seu verdadeiro e extraordinário merecimento, excede os limites desta solenidade.
Aí tendes, Senhores Acadêmicos, o que dentro neles pude condensar.
Quisestes que eu fosse o ocupante da sua Cadeira e aqui estou para ter a honra insigne de, recebido pela voz amiga, eloqüente e magistral do eminente Sr. Aloísio de Castro, nela tomar assento e ficar no vosso luminoso convívio.
Serei o último dentre vós, não importa; serei o último, mas com a sinceridade do crente que se posta diante do seu ídolo.
E ídolo foi ele, sem rivais, de todos os homens de letras que, admirando-lhe a correção, a pureza, a resplandescência e contextura deslumbrante da frase, as excelências da linguagem e os lavores requintados do estilo, o proclamaram o artista supremo do idioma pátrio.
Objeto ainda do mais entranhado afeto, também o foi do sentimento nacional, que chegou a extremá-lo do resto dos mortais, numa apoteose, da qual já, em vida, o ia arrebatando a própria imortalidade.
E ele subiu, subiu e deixou-nos, para elevar-se até àquela estátua mitológica, banhada na transparência das lágrimas da Aurora.
Mas, assim como, nas primeiras alvas do despontar do dia, derrama a Aurora o orvalho, para nos raios do sol nascente banhar a estátua de seu filho Memnón, assim a Pátria Brasileira, inconfortada e triste, não deixará nunca de envolver nas lágrimas da sua dor o nome de Rui, que é o seu orgulho e a sua glória.
E para que dele e não de mim vos fique a impressão última, que suavize a monotonia deste discurso, aspirai, por momentos, o aroma que, em volutas de sublime louvor, se lhe desprende da pena, ao cinzelar a personalidade de Carlyle, dando-nos, talhada em alto relevo, a própria índole do seu gênio e obra, oraculares e maravilhosamente grandes:
A sua inflexível sinceridade, o íngreme dos seus contrastes, o bravio das imagens que lhe povoam o estilo, a luta contínua da sua originalidade com os preconceitos e convenções sociais, o seu entusiasmo pelas expressões heróicas da individualidade humana, o fragor das suas apóstrofes, as mutações indefiníveis do seu humorismo, melancólico e ridente, austero e escarninho, eloqüente e brutal, a própria monotonia de certas correntes do seu pensamento iterativas e periódicas como certos ventos em certos quadrantes do céu, dão a lembrar um panorama de penhascos escalvados à borda das águas azuis, com o cristal das ondas franjando-se em espuma branca, a marulhada rebramindo contra os promontórios silenciosos, o vôo solitário das aves marinhas, e por cima, nas tréguas da procela, quando as faíscas não esfusiam pelas arestas atrevidas, a eterna calma do firmamento, a força, o conflito, a pureza, a eloqüência, a imortalidade.



Resposta do SR. ALOÍSIO DE CASTRO
SR. LAUDELINO FREIRE:
Se nos fora necessário confirmar o acerto da escolha que vos trouxe ao nosso grêmio, nada melhor nos serviria do que as belas palavras que tão efusamente acabamos de aplaudir.
A modéstia pode ser uma forma da elegância. Talvez por isso esteja na tradição acadêmica que o recipiendário nunca encontre em si aquelas mesmas qualidades que na véspera julgava possuir, sendo simples candidato. Não vos ficou mal essa faceirice, quando, aludindo ao vosso preexcelso antecessor, o Conselheiro Rui Barbosa, nos dizeis que nesta sucessão buscamos o último para seguir-se ao primeiro. Ele foi, por sem dúvida, o primeiro em tudo. Mas vós sois da sua escola, e, vestindo a toga dos juristas e dos letrados, não deixareis extinguir-se a luz do facho.
Compondo o nosso número sem preocupação de semelhanças intelectuais entre os que já foram e os que chegam, amamos a unidade dentro da variedade, somos enfim como aqueloutra Academia, que veneramos por modelo, e Voltaire definiu: “un corps où l’on reçoit des gens titrés, des hommes en place, des prélats, des gens de robe, des médecins, des geomètres et même des gens de lettres...” Por muitos desses títulos, estando aqui, estais em vosso lugar.
Naquela página que há anos escreveu um dos vossos amigos, mal conhecendo que o seu dia tão breve lhe não concederia sentar-se na Cadeira a que fora chamado, ele aplicou a esta Casa a letra que o grego Platão fez esculpir no friso da Academia, onde ensinou a serenidade: “Aqui não entre quem não for geômetra.” Ora, muito bem podeis aqui entrar, Sr. Laudelino Freire: sois geômetra.
Tendo professado essa disciplina no Colégio Militar, mostrais que o vosso talento deitou raízes na especulação matemática, para luzir nas múltiplas formas da cultura superior. Eu vos felicito, porque a mim sempre me pareceu uma invejável forma de poetar esse viver com a imaginação nas figuras e nos corpos do espaço.
Haverá assim um como sentido artístico nos axiomas e nos postulados, e no mais que bebestes nos Elementos de Euclides, passeando, entre os álamos. Afinal os helenos mostraram que a beleza reside na forma e na proporção, e neste universo onde tudo são relações matemáticas quem amar o belo tem de amar a geometria.
Nem por outra cousa assinou Platão a arquitetura como a arte preclaríssima, senão por ser a mais regrada nos princípios geométricos.
Geômetras por geômetras sejam entendidos. Eu admiro Pitágoras e o seu quadrado da hipotenusa, mas confesso não sou forte nos teoremas, nem na medida dos ângulos, e vou pouco além da distinção da linha reta com a linha curva. Porém, médico, aprendi que a medicina tem as suas matemáticas e, como está na coleção hipocrática, toda consiste em adição e subtração. “Medicina nihil aliud est nisi adpositio et ablatio.” Não sei ao certo o que isto seja, mas Galeno interpretou: dá as forças, se faltam, e retira os humores, se excedem.
Se não foi esta remota analogia entre as nossas cogitações que me indicou para receber ao consumado filólogo que sois, então terá sido aqueloutra, posta pelo Nietzsche, ao apontar a necessidade do rigor lingüístico na ciência médica, dando por aliadas a medicina e a filologia.
Não basta? Pois ainda reparo que sobre tantos títulos ilustres que vos exornam sois filósofo, e não há medicina sem filosofia. “Ubi desinit philosophus, ibi incipit medicus.” Tolerai-me estes latins, vício meu. Não ficam mal em se tratando de filosofia, a que dão peso, severidade e eu diria graça.
É, sem dúvida, muito por admirar-se essa grave feição do vosso espírito, numa terra onde escasseiam os filósofos e nuns tempos em que se pensa e se raciocina dançando. Mas não foi o idealista grego quem exalçou a dança para dar validez ao corpo e gentileza ao espírito? O mesmo Sócrates alguma vez bailou.
Quanto a vós, que segundo ouço também rodopiais no torvelinho coreográfico, nada com isso perdestes do contemplativo e do espiritual. Escreveis livros para saber onde a felicidade das cousas, e através dos sistemas e das escolas, dos métodos e das doutrinas, sondais subtilmente a verdade, que todos dizem transparente, quando os filósofos a declaram no fundo de um poço.
Na vossa apreciada súmula de Filosofia e Moral não nos dizeis ao claro onde ela esteja, nem que escola preferis. Quem já decifrou o fundo da vida e a origem das cousas? Eu vos tenho por eclético. Nesta difícil arte da vida não será por desprezar-se aquele “deleitai-vos sem inquietação”, do Epicuro. Mas também não é desconveniente viver estóico algumas horas, com Epicteto. Crer-se-ia que há para tudo e para todos, nisto de doutrinas filosóficas, em que os conceitos abstratos nos levarão aonde quisermos. Para dizer de verdade a glória da filosofia, como escreveu Renan, um dos que citais, não consiste no desenlear e solver a dúvida, sim no propor o problema. Pode parecer que estamos onde estávamos. Mas progredimos muito desde Aristóteles...
Desconheço o vosso conceito da filosofia na arte. Arte como fator social? Arte pela arte? O que sabemos todos é que sois artista de alma lírica, que amais na contemplação a poesia do silêncio e vos comoveis com as grandes inspirações da natureza e dos sentimentos. A arte é múltipla, a harmonia é una. Tendes lágrimas para os noturnos de Chopin, êxtases para as páginas de Flaubert e dobrais os joelhos ante o Correggio e o Beato Angélico, sentindo na espiritualidade das imagens a voz oculta e misteriosa das cousas.
Ao vosso esquisito gosto da pintura devemos um severo estudo desse ramo da arte desde o Brasil colonial aos dias de hoje, e ninguém terá em pouco esse e outros esforços com que encorajais o nosso progresso artístico. Chegastes a uma conclusão desalentadora para a geração atual: a pintura entre nós decai. Infelizmente não vos enganastes. Já não há no meneio do pincel um Pedro Américo ou um Victor Meireles. A nossa natureza ainda espera o seu grande intérprete na tela e as alegrias e tristezas humanas ainda não deram aos nossos artistas a nota verdadeiramente grandiosa ou sublime.
Como amais a pintura amais a poesia. Vossa paciência de colecionador vos induziu a publicar os Sonetos Brasileiros, onde os nossos poetas de todas as escolas se representam no verso e na imagem. Destes a ver o bom e o mau, supondo afinal tediosa uma coletânea de sonetos todos perfeitos, como no escrínio de Heredia. A perfeição pode acabar monótona. O fato é que sem intenção também concorrestes para apresentar o Brasil como uma terra de poetas, tal qual Sílvio Romero, a quem imputastes esse pecado, criticando-lhe o largo tomo que na História da Literatura Brasileira consagrou à evolução da nossa poesia, com o que vos pareceu ter inculcado que sejamos no domínio intelectual “um país tão essencialmente poético, quanto essencialmente agrícola no domínio das indústrias”.
Não estarei longe de aceitar certas restrições que fazeis à obra de Sílvio Romero, mas peço licença de opor minhas dúvidas à apreciação geral com que julgais o crítico sergipano. Incoerente, contraditório, inconseqüente, tudo isso terá sido. Mas já se viu crítico imutável nas idéias? Ele não quis ser o homem absurdo, que nunca muda de opinião. Digamos que ele abusou seu tanto desse direito e mudou demais; mas conceda-se que em matéria de opiniões está o relativo das cousas, com as circunstâncias, o tempo e o lugar. O que se impõe na vasta obra de Sílvio Romero, crítico, historiador, jurista e filósofo, é a variedade e a vastidão do saber. Se era desigual no escrever, descuidado, descomedido ou desabrido, mostrava em tudo nervo, idéia e inspiração. Ninguém mais valoroso nas lutas, e, se era apaixonado, era digno e sincero.
Em José Veríssimo, a quem consagrais um ensaio de acerbas páginas, não haveria o longo estudo e a meditação de Sílvio Romero. Outro temperamento, outras tendências, outra formação, menos vôo, mais equilíbrio. Um era arrebatado e violento, compassado e frio o outro. Ambos sintetizaram um momento vigoroso da nossa crítica literária. Mas esse gênero, se bem percebo, salvo raras exceções, ainda não deu frutos entre nós. Faculdade filosófica, o senso crítico, no alto sentido, não exige somente dilatada cultura, mas a complexa madureza do espírito generalizador. Não pode ser uma qualidade comum. Há crítica e critiquelha, críticos e criticastros. Vós não quisestes, Sr. Laudelino Freire, perseverar no caminho tão propiciamente iniciado com esse livro Os Próceres da Crítica, a que me referi. É contudo, dos vossos trabalhos, pelo arrojo da sinceridade e ardor das convicções, um dos mais fortes, embora dos vossos primeiros tempos de escritor.
Ainda não havíeis adquirido esse gosto do nosso bom falar vernáculo, que depois vos alistou na primeira plana entre os sabedores do nosso idioma, como um dos que mais utilmente o têm defendido. Foi uma evolução rápida e fecunda. Ganhastes horror ao galicismo e compusestes um substancioso Vocabulário, para extinguir a praga dos galiparlas e preservar a língua contra a tacha afrancesada. Passastes então a ser com isso um homem perigoso, e crede não é sem temor que me desobrigo desta oração, sentindo no ar a palmatória de cinco furos com que me chamareis a bolos por qualquer francesia que me escape.
Em vossa presença não é lícito falar sem todas as cautelas e as palavras se pesarão ouro e fio.
Escrever, só se for com muito tento. Sois autor de um Formulário de profícuas receitas ortográficas. Oxalá vos não vejais em aperturas quando dentro em breve ainda uma vez se discutir a questão da ortografia nacional. Governo e povo interessam-se no caso, e todos sabem que o nobre Ministro da Instrução, nosso luzido confrade, confiou a uma ilustre comissão resolver a grave matéria, dando as regras da redação oficial.
Não creio enganar-me vendo na resolução do egrégio Ministro o desejo de esclarecer o seu caso pessoal. Porque é notório, o Sr. João Luís Alves tem um caso ortográfico: Luís com s ou com z? A prudência é dos bons ministros. Há de ser por evitar futuras complicações que o nosso estimado confrade firma os despachos com a garatuja dos médicos, e ninguém assim sabe a letra que prefere.
Nem é cousa de nonada isto de letras nos nomes. Estou a recordar-me que um bom dia, bom como todos aqueles em que lhe beijei a mão, o Sr. Rui Barbosa comentou comigo o infortúnio que a ambos nos salteara. Sem licença dos donos os reformistas de Portugal nos trocaram o y do nome por um i desgracioso e inexpressivo. À verdade não sabíamos ao que nos servia esse y. Era por isso mesmo a nossa graça e o nosso mistério, alguma cousa como uma esquisita reminiscência helênica, uma bênção de Palas Atena.
No fim das contas em que pararemos? Escrita etimológica? Grafia simplificada? Fonética? O diserto presidente da Academia, que nasceu advogado, já tem prontos os embargos da defesa. Para ele (se é que o não calunio), todos os sistemas são péssimos. Só há um meio, este excelente, de uniformar a ortografia: acabem-se os idiomas vivos, enterrem-se para sempre os mortos e adote-se o esperanto, onde não há complicações. Vê-se que caminhamos para o futuro.
Força é, pois, redobrar na salvaguarda do nosso patrimônio lingüístico e a vós, Sr. Laudelino Freire, que o tendes servido nestes últimos tempos com o entusiasmo e indefessa dedicação, caberá chamar todas as forças ao combate, exclamando com o vernaculista:
Floresça, fale, cante, oiça-se e viva
A portugueza lingua!
No círculo das nossas letras a criação da Revista de Língua Portugueza representou considerável progresso, e só à vossa competência se deve a confiança pública que lhe ganhastes e tanto a tem prosperado. Não poderia faltar-vos com os aplausos o vosso glorioso antecessor nesta Cadeira e nos parabéns que vos ele ofereceu, ele que tinha o primado das nossas letras, como o sumo escritor do nosso idioma, alcançastes a palma e o prêmio. Esperemos que a Revista, venha a ser o grande órgão do pensamento nacional em todas as formas da composição literária. Não me venhais, contudo, às mãos, se eu estiver com os que lhe pedirem um pouco mais de arte e um pouco menos de gramática.
Inda há pouco formulastes um belo panegírico da ciência gramatical, mas cauteloso refugastes o título de gramático, que todos à fina força porfiam em dar-vos, pelas muitas notícias que tendes da nossa língua.
É que este gênero de homens gramaticógrafos se apresenta no geral como a antítese da vossa urbanidade e gentileza, e ninguém lhes escapa à férula de padres mestres. Nunca se viu intolerância como a deles. A Academia tem no caso as suas experiências, mas como fortunadamente não trazemos espadim nas sessões ordinárias, não houve ainda grave perigo.
Já, porém, futurastes, Sr. Laudelino Freire, vós que fostes donoso alferes da Escola Militar e nos anos juvenis floreastes uma espada menos inútil do que essa que com tanta elegância e bizarria hoje trazeis à cinta, já futurastes o que havia de ser entre nós esse combate a pé firme em campo raso, se discutíramos gramática nas sessões solenes? Seria batalha crua em que se terçariam à mão-tente, como gládios fulmíneos, estas lâminas de gume embotado. Seja descrédito largar a peleja e desamparar as signas: nesse dia, talvez não tarde, porque já numerosos são os gramáticos da Casa, deixarei aos generais de verdade que aqui temos por parceiros a glória de luzirem belezas na ação, onde sereis o porta-estandarte, e hei de preferir o exemplo do meu mestre Horácio, que abandonou o broquel nos campos Filípicos, desertando as fileiras e tomando o partido dos que fugiam derramadamente.
Contudo sempre direi, com o Sr. Rui Barbosa, que a gramática não é a língua. A caturrice das regrinhas mata muitas vezes a qualidade prima do escritor, o belo gosto, e a mera preocupação gramatical só produz escritores entanguidos, enfezados, pesadões e desluzidos. O estilo, a arte da forma, é outra cousa, eu dissera um dom da natureza, e os que não trazem do berço essa intuição do ritmo, da eufonia e do equilíbrio da frase, jamais alcançarão trabalhar as gemas da arte no bem falar e no bem escrever.
O estudo aperfeiçoa o escritor, pode dar-lhe correção, facilidade ou ainda brilho, mas se lhe falece esse por assim dizer sentido especial da harmonia da forma, por mais que esforce o estilo nunca o subirá ao verdadeiro primor. Pode haver estro, arroubo, graça, pompa, valentia, lucidez, propriedade, mas a arte do estilo requer mais, quer o toque peregrino e indefinível, o sentimento exato da proporção e da beleza, único que assegura às obras do pensamento o selo da imortalidade.
Ao Sr. Rui Barbosa o estilo o viverá nos séculos futuros. Quando porventura ele não fosse, em todos os domínios em que desdobrou a sua grande vida, na política, na jurisprudência e no jornalismo o símbolo imperecedouro da nossa nacionalidade, ele a quem devêramos chamar o numeroso Rui, como a Horácio nomeava Ovídio, porque escrevia em todos os metros, perduraria na posteridade pela só incomparável glória das suas letras.
Sua linguagem, eis o instrumento prodigioso em que lavrou os monumentos da sua vida de lutador. Ela, a arma invicta do jurista, a força temível do político.
Ninguém ainda o excedeu no trato e no meneio do nosso idioma, ninguém o pôs em tanta sublimidade. À língua copiosa trouxe inumeráveis cresces, enriquecendo-lhe o vocabulário, criando novos moldes de expressão, na sua admirável sintaxe.
Por seus livros hão de ler os que quiserem buscar o nosso vernáculo na fonte mais pura, porque ele o foi tomar na sua prístina derivação, nos sermonários e nas crônicas, na conversa diurna e noturna dos Vieiras, dos Bernardes, dos Lucenas, dos Sousas, dos Barros, dos Arrais, nos lídimos padrões da boa escritura portuguesa. Daí as normas clássicas do seu escrever, de cuja rigorosa severidade nunca abriu mão, ainda que embelecendo e aviventando a nossa linguagem com o colorido de um novo relevo, em que se irmanam na majestade do seu estilo sem par as formas venustas do dizer antigo com as louçanias e os afeites do moderno.
Esse dom de escritor, servido pela mais poderosa expressão lingüística que já se admirou em nosso meio, respondia no Sr. Rui Barbosa a uma vocação irresistível. Falando ou escrevendo, sentia-se-lhe o jorro da torrente, a caudal estuosa a borbotar nessa opulência que os que o não compreendiam estolidamente levavam à conta de redundância e prolixidade. Acertada prolixidade, porque se dentre as suas obras houvéramos de eleger a melhor, força seria adotar o parecer de um antigo quanto ao mais famoso dos oradores, preferindo por mais bela a mais longa.
Não era só o escrever muito que se gabava no grande brasileiro. Entre os latinos, Lucílio versejava duzentos versos num abrir e cerrar de olhos, e o galante D. Francisco Manuel de Melo reconta o caso de certo castelhano que louvava a Lope de Vega, poeta tão fecundo que por obsequiar a um amigo escrevera numa noite uma inteira comédia, com loas e entremezes; ao que contraveio alguém, que sendo assim teria dado prova de bom amigo, não de bom poeta.
No Sr. Rui Barbosa não havia somente excepcional facilidade no compor e escrever, senão no escrever muito bem, escrevendo muito. Seus amigos conhecíamos as circunstâncias em que doente, e sob o peso de grave contrariedade política, acabou de uma penada esse formoso discurso acadêmico com que aqui recebeu a Anatole France.
Qualquer que fosse o gênero de composição que versasse, no que lhe saía dos lábios ou da pena estava o signáculo da perfeição e da superioridade. Escrevendo para a imprensa, de um dia para o outro, nessa larga vida jornalística de que nos fizestes, Sr. Laudelino Freire, uma resenha tão brilhante, seus artigos doutrinários ou políticos, onde os ideais modernos tiveram a melhor defesa, não eram trabalhos fortuitos. É que sob a pena do mestre, disse alguém que o soube admirar, o Dr. Francisco de Castro, “sob a pena do mestre não há criações efêmeras, e até os improvisos do jornalismo têm a solidez e o labor das obras lapidares”. Força é reconhecer que o nosso meio ainda não comportava um jornalista desse cunho. Os diários que redigiu tiveram vida curta e ele não foi frívolo para ser popular.
Mas de cada vez que aparecia na imprensa era para cometer grandes batalhas. Às suas camarteladas pelo Diário de Notícias conveliram os alicerces do Império, que se desquiciou e ruiu.
Veio depois a luta contra o governo de Floriano Peixoto, com quem rompera abertamente. Enfrentou-o intrêmulo, com o valor do peito endurecido nos prélios. Os acontecimentos políticos se agravaram com a revolta da armada, em setembro de 93. Foram dias turvos. Aos escova-botas do governo de então era malsoante a linguagem do Sr. Rui Barbosa.
Ele era nesse tempo o Rui combatido e discutido.
Matraqueava-se que dera em pantana com as finanças nacionais no Governo Provisório, ainda que ninguém lhe respondera à monumental defesa que fez do seu plano financeiro.
Só um homem lhe não faltou com a justiça, o seu adversário da véspera, esse intemerato Visconde de Ouro Preto, glória do Império, que, discordando embora da orientação financeira do Sr. Rui Barbosa, reconheceu que ela obedecia a um programa sincero e tinha uma traça definida.
Naqueles tempos inquietos ninguém foi mais perseguido do que o Sr. Rui Barbosa. Era o homem funesto do regime.
Quando estalou a revolta, nada mais fácil aos esfola-caras da situação do que se apoderarem daquele que se fizera pela voz inflexa a maior dificuldade do governo. Clamou-se à boca cheia que era revoltoso, quando está historicamente provado, com todas as provas, que o Sr. Rui Barbosa não foi participante no movimento.
Estava-se vendo o pretexto especioso para o ferrolharem nas prisões do Estado. A época não era de brinquedos. O marechal era duro dos fechos, a militança impava e pimponava. Era a consolidação da República.
Mas ao Sr. Rui Barbosa não faltou naquele dia incerto o amigo certo. Esse amigo foi meu Pai. Creio não ser indiscreto trazendo a público um episódio até aqui guardado no círculo da intimidade, e do qual data a firme veneração que me honro haver sempre tributado ao Sr. Rui Barbosa, nos muitos anos de uma estreita amizade que foi, com a doce conversação de meu Pai, o melhor livro da minha vida.
Vão precisamente trinta anos, mas eu diria ontem. Bem me lembra que no dia imediato à declaração da revolta, era eu meninote, meu bom Pai me tomou à parte, recomendando-me silêncio, porque se ia hospedar em casa um doente, que havia de vir de Minas. Fez-me espécie o aviso, porque eu me não havia em conta de diabrete. O doente veio à noite, mas eu o não vi. O que vi, no dia seguinte, muito de manhã (que é que escapa aos meninos?) foi saírem juntos de casa, em carro que rodou célere, o conselheiro Rui Barbosa e o Dr. Francisco de Castro. Quando meu Pai regressou havia deixado a salvo, na Legação do Chile, então à Rua D. Luiza, o seu grande amigo, que dali depois se embarcou para o Rio da Prata. Não sei o que eu disse então a meu Pai, mas foi como se dissera que a medicina era grande causa quando operava dessas curas repentinas da noite para o dia. E porque o meu contentamento era a minha solidariedade com o amigo da sua casa, meu Pai me sorriu com o seu sorriso mavioso, e me cobriu com uma dessas bênçãos de que eu fiz a alegria, o consolo e o prêmio dos meus dias.
Os rudes tempos da adversidade, que forçaram o Sr. Rui Barbosa a expatriar-se, nem o intimidaram, nem o entibiaram. Volveu maior. O Jornal do Commercio, tendo à frente o Dr. José Carlos Rodrigues, de tão cara e bem querida lembrança, solenizara-lhe o regresso com uma festa intelectual que ficou memorável. O governo civil restituíra-lhe as estrelas do generalato, que a ditadura lhe arrancara. Seu merecimento vencera todos os ódios e todas as prevenções, acabando por impor-se ainda àqueles que de princípio o combateram. E o Sr. Rui Barbosa começou essa segunda fase da sua vida política, ainda maior que a primeira, e na qual sempre pela luta, numa longa jornada, fez a ascensão que o não subiu ao poder, mas o levou ao Capitólio do seu verdadeiro triunfo.
Jurista, passou a ser o intérprete máximo das leis, o esclarecedor perspícuo dos seus textos, o grande homem do direito, o guarda intimorato das nossas instituições.
Ele nunca foi político no sentido vulgar, único conhecido entre nós, num país onde não há partidos com idéias, mas apenas rótulos pomposos, idéias de tabuleta e de cartaz. Faltava-lhe para isso a aguda ciência das conveniências. No parlamento era voz perdida. Mas quando as questões saíam do domínio dos rasteiros interesses e das facções para se altearem a outras esferas, então era a sua vez. Porque nele verdadeiramente vibrava o espírito nacional, nele o órgão da liberdade e da justiça, de cuja paixão se nutriu até os derradeiros dias e cujas causas ardidamente pleiteou na tribuna política, no pretório e na praça pública. Quem com mais pertinácia serviu ao dever? Quem a ele se adiantou na grandeza do civismo? Quem melhor definiu as nossas aspirações? Ninguém o excedeu na dedicação à pátria, que pôs em primeiro lugar e acima de tudo, como aprendera com Cícero no Tratado dos Deveres.
Do abolicionismo ao civilismo a voz era a mesma, aquela voz indômita e fogosa, que insuflou novo alento ao nosso povo, já descrente e amortecido pela indiferença. Cada batalha o crescia na admiração geral, dentro e fora da pátria.
Nunca a arte da oratória política, tida por Latino Coelho como o mais dificultoso gênero de literatura (esqueceu o púlpito), se elevou em nosso meio a mais remontados vôos. Sentia-se na inimitável facúndia do Sr. Rui Barbosa o rio caudaloso de Homero, o instinto da verdadeira eloqüência, dessa que supõe o “exercício do gênio e a cultura do espírito”, e que Buffon separava da garrulice inane dos discursadores.
O recinto senatório foi o teatro das grandes vitórias do tribuno. Do velho Senado que Machado de Assis conhecera e nos falou em tão primorosas páginas, algumas raras figuras do Império haviam feito o ginásio da eloqüência. O Sr. Rui Barbosa foi dos pouquíssimos que mantiveram na República aquela tradição. Numa dilatada vida parlamentar, uma longa e severa pregação doutrinária, o Senador Rui Barbosa, com a palavra iluminada por todas as graças, foi na nobreza da dicção o grande mestre da oratória. Tudo nos seus discursos, a disposição, o movimento, a contextura, o aproxima ou ainda o iguala a esses grandes modelos da antiguidade, onde a palavra e o pensamento tiveram a sua mais excelsa expressão. Nunca a inspiração lhe refugiu e, orador, jamais conheceu aquele “medo que enfreia as línguas”, de que se fala na Eneida.
Nas mais arriscadas horas não decaiu a energia do seu verbo, sempre valoroso e indefesso sempre para combater os desmandos da violência, os abusos do poder, as cegueiras do despotismo, para censurar o vício, reprimir o mal, confutar o erro, a injustiça, a inépcia, a iniqüidade e o arbítrio.
Dir-se-ia que foi ao contacto das assembléias públicas que se despertaram os hinos mais espontâneos do orador.
De quantos aqui hoje somos, não poucos estivemos ao seu lado, quando, faz alguns anos, acudindo pelo interesse da nação, o Sr. Rui Barbosa arengou ao povo, propugnando a entrada do Brasil na guerra. Das sacadas do Jornal do Commercio, falando para a rua, ele enfrentava o auditório fremente. Era a mesma palavra de Buenos Aires que agora ali, vertida daquele frágil arcabouço humano, crescido e encorpado aos olhos da multidão num vulto imenso, estrondava e rebramia, incendida no ardor patriótico. Naquele dia os tempos se mudaram. Estas águas que contemplamos eram as ondas cerúleas do Egeu, e o Sr. Rui Barbosa o perfeito cidadão, o perfeito democrata, o repúblico dos dias da Grécia livre.
Essa irrefragável autoridade a que se alçou e o fez mais que ninguém venerado por seus concidadãos, ele a logrou assim pelo esplendor das suas virtudes cívicas como pela sua experiência e inimitável estudo, todas as horas ferventemente consagradas às cousas sumas da sabedoria e às cogitações excelsas, na perquirição da ciência e no culto da arte, nesse templo dos livros, em que viveu distante e desatado das vulgaridades.
Com o exemplo, aos moços doutrinou o desdém da obra aligeirada, perfunctória, incuriosa, imatura, mas que buscassem na pesquisa profunda e paciente, no saber de raiz e fundamento, no trabalho de sobremão, nos frutos bem assazonados, o último grau da perfeição, a segurança e o primor da obra polida e acabada.
Não se conheceu modelo assim de atividade sem trégua, de paciência mais constante no trabalho, que ele chamou a bela forma do patriotismo; e por isso, havendo atingido a suma exação e preexcelência, se sobreexcedeu a si mesmo cada dia e não conheceu declínio na sua comprida idade.
Terminou no mesmo fastígio, consagrado na história intelectual da humanidade como um dos espíritos mais levantados do seu tempo, havido na pátria como o varão sábio, de ânimo inteiro, que volvido para as claridades infinitas do bem e da justiça, acabou por tocar à perfeita ascese.
Para prol e bem da pátria Rui Barbosa fez do amor da Justiça o alto sonho dos seus dias e o sublimou em tocante ato de fé, quando beijou publicamente a mão a um juiz no Tribunal. Era o culto da Justiça, expressão do bem, da Justiça, símbolo da igualdade, da Justiça, emanação da verdade divina, e pois representação de Deus, que é a verdade das verdades.
Pela justiça viveu e clamou, ainda que sabia que no deserto clamava. Das sementes que semeou, muitas como as das parábolas, se secaram nas pedras e na planície escalvada. Mas outras medraram para o futuro que começa, e já o grão germina e assoma na plântula, e brota e enfolha e floresce e fruteia. O carvalho vingou e vai dar sombra. Quando então amanhecerem esses dias florentes e prósperos que Rui Barbosa sonhou à pátria, todos o sentirão vivo, presente e eternamente abençoado.
Se a cada um seu dia, o de Rui Barbosa será o das gerações vindouras. A do seu tempo mais de uma vez o negou e renegou. Mas foi para o tornar maior, para o experimentar na ingratidão e na fria dureza dos homens, para lhe conceder o resplendor dos espinhos à coroa imarcescível que lhe havemos de tecer e votar, entre os cantares da glorificação.
Não lhe dissemos adeus para sempre, não se apartou de nós. Conosco assiste e ainda agora o contemplamos como na vez da sua última visita a esta Casa, quando celebramos o cinqüentenário de Castro Alves, cujo plectro ele louvara há quarenta anos. Já o não tínhamos por nosso presidente, mas com a presença veio dizer-nos nesse dia que nem passa nem perece a admiração ao gênio.
Também assim não passará o culto do mestre imortal, que se antecipou à glória da posteridade.
Esse culto a Academia o assegurou, elegendo-vos, Sr. Laudelino Freire, para a Cadeira que entrais a ocupar.
Versando o direito entre os mais distintos, escritor castiço que a nenhum é segundo na estima do nosso vernáculo, na jurisprudência e nas letras freqüentastes a lição de Rui Barbosa, e familiar às suas obras sabeis compreender e apreciar o modelo, de tão egrégia beleza.
Na portentosa vida, tão admirada e admirável, que insignemente acabais de memorar nesses gratos louvores que toda a Academia subscreve, a fama do cidadão se completa na do homem de letras. Chegais exortado por esse exemplo, e lidador incansável na vida dos livros, estudioso a quem não falta o aplauso dos doutos, benfeitor das artes e das letras, sereis com tão relevantes méritos uma das fortes colunas da Academia.
Não esqueceremos nesta ocasião a terra que vos foi berço e hoje exulta com a vossa vitória, o Sergipe de Tobias Barreto. Recordá-la é como vos pôr diante dos olhos a suave imagem dos pais, para quem a vossa devoção se não deixou de volver neste dia dos prêmios.
É doce na hora feliz reatar na cadeia do tempo os dias distantes e dispersos. A ventura presente se engrandece quando a anima o reflexo de um passado onde a voz das esperanças não mentiu. Respondestes belamente, Sr. Laudelino Freire, às interrogações da vossa juventude. Outros louros vos esperam. E amanhã como hoje tereis o aplauso dos vossos confrades, em cujo nome vos trago as boas-vindas.




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