domingo, 18 de abril de 2010

Tuesday, April 13, 2010: Por Adolfo Sá em seu Blog Viva La Brasa


Tuesday, April 13, 2010


ACORDA NATUREZA EV Lacertae é uma estrela bem menor que o Sol, fotografada pela 1ª vez pelo satélite americano Swift em 25 de abril de 2008. “Há muitos anos a ciência sabe que na superfície solar ocorrem explosões c/ muitas vezes mais energia que a de bombas atômicas”, explica a Wikipedia gringa: “Mas quando astrônomos compararam as labaredas solares c/ as de outras estrelas, as do Sol saíram perdendo.” De todas as estrelas da Via-Láctea, Lacertae tem a chama de brilho mais intenso.
Em outras palavras, uma minúscula, insignificante estrela capaz de um soco poderoso”, resume Casey Reed, cientista da NASA. O poder de fogo de EV Lacertae está em sua juventude. “Enquanto o Sol é uma estrela de meia-idade, EV é uma adolescente”, diz Reed, “e está girando rapidamente. O giro rápido somado ao interior agitado desprende gases que formam um campo magnético bem mais poderoso que o do Sol.
Lacertae é o nome de uma banda de Lagarto, Sergipe, cidade cujo nome em latim significa ‘lacertae’. Rock rural experimental, já ouviu falar? No último sábado rolou show dos caras aqui na cidade, depois de uma ausência de quase 5 anos. Foi no Capitão Cook, um bar onde, sempre que eu vou, chove. Foi assim no Retrofoguetes ano passado, e na Plástico Lunar & Corações Partidos há duas semanas. Mas desta vez foi diferente.
CÉU D’ÁGUA
Já estava chovendo antes de eu sair de casa. Desde quinta-feira, e continua a chover. Até o momento, 64 casas destruídas, 1375 danificadas, 2690 pessoas desabrigadas, 16 municípios afetados – entre eles cidades históricas como São Cristóvão e Laranjeiras e a capital, Aracaju. Segundo dados do INMET, nos primeiros 11 dias de abril foram registrados 78% da média de chuva p/ todo o mês.
O Lacertae nunca foi sucesso de público, mas sempre teve moral c/ quem curte SOM. 1ª banda sergipana a tocar no Abril Pro Rock, em 1996, no mesmo evento em que Chico Science fez uma de suas mais clássicas apresentações e que [vejam só] ficou marcado pela enxurrada que atingiu Recife. 1ª banda de rock de SE a participar de uma coletânea nacional, a BRASIL COMPACTO, do selo Rock It! de Dado Villa-Lobos, junto c/ Eddie, Living in the Shit, e umas bandas do Sul e Sudeste. Capa da Ilustrada na Folha de S.Paulo em 98 e novamente destaque em 2001.
2 discos lançados BERIMBAU DE CIPÓ IMBÉ, de 2000, e A VOLTA QUE O MUNDO DEU, 2005 – pelo próprio selo, Zabumbambus, que também é uma Casa de Cultura no Campo do Crioulo, onde se ensina música, literatura, folclore e artes plásticas de modo informal p/ a criançada local. “O nosso projeto já foi aprovado pelo Ministério da Cultura, mas até hoje o dinheiro não foi liberado”, diz Deon Costa, vocal e guitarra do duo composto por ele e seu primo Aldemir Tacer, o 1º baterista do mundo a usar berimbau c/ bateria, uma adaptação melódica à ausência do baixo.
ARREPIA A SAPUCAIA O Lacertae faz música espontânea”, disse Tacer ao apresentador Fábio Massari p/ o programa Lado B na Mtv durante o festival Rock-SE em 98. “Eu trabalho com agricultura, planto feijão, abóbora, planto milho, tal, mas agora eu tô plantando música”, Deon falou ao Jornal Hoje numa reportagem especial. “É uma banda da qual não se pode definir um estilo ao certo”, escreveu a jornalista Maíra Ezequiel no site Overmundo: Sua origem por si só é impressionante: eles são do Campo do Crioulo, que é um vilarejo de uma rua próximo à cidade de Lagarto, no interior do estado. Começaram como um trio, lançaram uma demo que fez um sucesso impressionante, e quase estouraram junto com o movimento Mangue Bit: estavam pra fechar contrato com a falecida Rock It! quando o vocalista pirou (de verdade!) no melhor estilo Pink Floyd e Syd Barrett. Mais impressionante é que a banda continuou e reinventou o som como um duo.
Maíra definiu bem: foi preciso REINVENTAR um som que por si só já era original. O Lacertae surgiu no início dos anos 90 influenciado pelo movimento grunge e rock industrial – o tal vocalista que “pirou”, o Paulo Henrique, toca instrumentos que ele mesmo inventa, como a percussão feita c/ escapamentos de carros e o inédito ‘cabaçofone’, que remete a um didjeridoo aborígene. Bom, o Paulo em pessoa parece um aborígene. No início de 97 ele foi internado pela família na clínica São Marcelo, famosa por causar mais danos que curas, mas superou essa fase e hoje tem um novo projeto musical, Cinemerne.
Na verdade Paulinho não pirou, ele viajou desta dimensão p/ outra e só agora está retornando”, diz Gildécio Costaeira, outro primo-lagarto, responsável por toda a arte da Lacertae. A fita-demo de 95, intitulada 100 KM C/ 1 SAPATO, foi eleita um dos 25 melhores DISCOS independentes do rock brasileiro de todos os tempos pelo jornalista Alexandre Matias, do coletivo O Esquema. Top 13, à frente de BALADAS SANGRENTAS de Wander Wildner, MENORME do Zumbi do Mato, A SÉTIMA EFERVESCÊNCIA do Júpiter Maçã, CHORA do Los Hermanos, DE LUXE 2000 do Thee Butchers Orchestra e MANIFESTO DA ARTE PERIFÉRICA de Wado: “[...] a fita de estréia do Lacertae é o elo perdido entre o pop dos anos 90 e o experimentalismo dos dias do Vzyadoq Moe.
ELETRICULTURA
BERIMBAU DE CIPÓ IMBÉ é o álbum de uma banda jovem em plena ebulição, c/ rocks nervosos tipo ‘Líquido’ – “O homem pensa que está pensando/ mas nem sempre o homem pensa/ como os frutos os homens também despencam [...] eis aí, belas donzelas líquido adentro, orgasmo, paixão e dor/ líquido motor acabou o líquido acabou o amor...” – e baladas sensíveis como ‘Coração’ – “...correndo como água/ voando como o vento/ e acendendo chamas de força no pensamento...”. Psicodelia sertaneja c/ belos fraseados de guitarra e andamento fluido jazzístico, c/ a participação de João Bole Bico na toada e Daniel Maximiliano no piano na surreal ‘Sergipe’, uma faixa instrumental sem guitarra.
O disco seguinte, A VOLTA QUE O MUNDO DEU, foi pouco divulgado e até subestimado, mas surpreende a cada nova audição. Produzido no Estúdio 3, em Aracaju, e mixado no Mundo Novo em São Paulo por Buguinha, técnico de som da Nação Zumbi, o álbum tem elementos eletrônicos e um climão DUB, c/ algumas canções que grudam no ouvido – como ‘O Danado’ e ‘Eu Não Posso Ficar Parado’ – entre uma viagem e outra. “Em méis e méis a lua vinga/ Em seis e seis doze, só pares sem ímpares/ Aí o jogo começa assim é a vida”, dizem em ‘Pra Que Pressa’, num dialeto próprio. Em ‘Entrada e Saída’ cantam: “...meu coração é de pinho, meu pensamento é carinho/ A minha voz é o contato entre a matéria e o vazio...”. Deon toca violão, rabeca e conga além das suas Fender, e Tacer, “berimbateria, 'beck' vocal, conga, flauta, zabumba". Ambos criaram os efeitos. A faixa ‘Amiga Folhagem’ tem a participação de Lira Paes do Cordel do Fogo Encantado e é uma fábula de Sílvio Romero, intelectual e político de projeção nacional nascido em Lagarto no Séc.XIX.
Sílvio Romero é p/ a Lacertae quase o que Selassié era p/ Bob Marley. Há fotos do tiozinho no encarte do disco de estréia, e em 2008 Aldemir Tacer lançou um trabalho solo chamado ELETRICULTURA, totalmente baseado nas histórias de Romero. Calango fez um sobrado/ de 25 janelas/ Pra botar moças brancas/ mulatas cor de canela”, Tacer canta e toca em sua pequena obra-prima low-fi, um álbum despretensioso mezzo eletro meio matuto, a tirar pelos títulos das músicas: ‘O Calango’, ‘O Jenipapo’, ‘Lá Vem a Lua Saindo’, ‘A Mutuca’, ‘A Cachaça’, ‘Baile da Lavadeira’, ‘Veja Com Quem Quer Ficar’, ‘Cajueiro Pequenino’, ‘Meu Coração Sabe Tudo’ e ‘O Sapo Cururu’. Teclados, guitarrinhas mangue, backing vocals femininos, bateria orgânica mesclada c/ programações...
Grande Tacer. Meu amigo. Já fumamos e rimos muito juntos. Faz uns 2 anos que não o vejo, faltei ao seu casamento, tava fora do ar nesse dia, mal aí véi! Lembro de uma vez que ele apareceu lá em casa de volta de uma temporada no eixo RJ-SP, e me contou de uma noite em que foi parar numa rave: “Eu tava c/ uma menina e não sei como a gente foi parar lá... Aí tinha um pessoal em volta duma turma que tava encenando uma peça, tipo teatro de rua só que na praia, eu já tava doido, espalhei a maquiagem da minha namorada na cara, entrei na roda e comecei a interagir c/ os atores, declamei um poema do Sylvio Romero, ninguém entendeu nada, mas o pessoal que tava assistindo começou a aplaudir”... Hahaha! Grande Tacer.
A VOLTA QUE O MUNDO DEU
Deon Costa também está casado, tem duas filhas, e nos últimos anos criou um projeto paralelo, o Caneco D’água, que ele apresentou neste sábado p/ a meia-dúzia de gatos pingados que não teve medo da chuva. Comemorando os 20 anos da Lacertae, Deon tocou várias clássicas, como ‘Casulo’, ‘Abra a Porta’, ‘Viagem no Pensamento’ e ‘Caminho de Santiago': “Retorno, começo do passado/ A imaginação é a estradinha e o melhor caminho é o de Santiago”... Riffs a la Hendrix c/ solos de wah-wah e microfonia, mais a participação da nova geração do Crioulo, c/ 2, às vezes 3 caras na percussão – fazendo muito barulho – , e os primos Diel no lugar de Tacer na ‘berimbatera’ e Costaeira no baixo em algumas músicas.
A idéia do nome Caneco D’água inspira-se no gestual do homem trabalhador sedento por água fresca e do ato acolhedor de quem sacia essa sede”, traduz Deon, que lançou em 2009 um EP c/ sons como ‘Corpo Fechado’ e ‘Céu D’água’, que ele tocou no Capitão Cook. E Lacertae, Deon? “Pode significar tanto os répteis multicoloridos como a cidade onde nascemos. A música preserva de maneira natural a liberdade rítmica e poética: um berimbau acoplado à bateria, guitarra e poesias, criando uma massa sonora. Só ouvindo pra entender”, ele avisa.
Costaeira também tem sua banda, Uni Campestre, cujo CD saiu pela Zabumbambus: ‘Florestal’, c/ 10 sons, como ‘Manga Rosa’, ‘Surf Rural’ e ‘Estrela Miudinha’. Deve ser alguma coisa na água de Lagarto. Depois de Deon apresentar seu Caneco D’água, veio a Zanimais, banda nova c/ um vocalista/guitarrista de qualidade e referências explícitas à Lacertae e ao manguebeat. Deon sabe da sua influência e da qualidade de sua música, por isso nem mesmo a ausência da audiência tirava seu sorriso ao final da noite. Quando fui me despedir e falei ao Costaeira que iria comprar um de seus quadros p/ pôr na minha sala ele disse: “Você tem que ir lá em casa, seu danado!
Durante 2 anos minha esposa Gil manteve uma loja em Lagarto, mas desde que ela fechou não faço uma visita aos meus amigos. Estou devendo essa. Tenho uma relação fraternal c/ a Lacertae de longa data. Em 96, mesmo ano do show no Abril Pro Rock – e na Expo Alternative no RJ – , eu fui convidado por Rodrigo Lariú, do selo Midsummer Madness, a escrever algo sobre os caras p/ um zine que acompanharia a coletânea BRASIL COMPACTO. Mandei um conto, ao invés de um release, escrito em cima do deadline. O mundo deu muita volta depois disso, mas a Lacertae continua brilhando e explodindo em chamas.
CIRCUS ORCHESTRA PRIMITIVA
Pegue uma garrafa de álcool etílico. Misture com mel. Beba. Você terá a noção exata do que é o Lacertae. Ao primeiro gole a receita parecerá intragável, forte demais para seu paladar acostumado a amenidades. Mas não se amedronte.
Tome outro gole. O álcool ainda desce queimando sua garganta, mas você já estará sabendo como tudo começou. O período jurássico encerrou-se com o choque de um meteoro. Anônimo, O Assassino. Restaram apenas três lagartos. Não trocaram palavra, não precisavam. Os olhos vermelhos se cruzaram e no mesmo momento souberam que só sobreviveriam se permanecessem reunidos. O Terceiro balançou sua cauda sobre o terreno arenoso e os outros dois concordaram com a cabeça. O terceiro gole. O Terceiro já não mais o é. Chame-o de Tacer, por favor. E aos outros, de Paulo e Deon. Suas línguas serpenteadas já proferem palavras. Suas barrigas já não se arrastam mais pelo chão. Muito tempo se passou, eles andaram 100 Km c/ 1 Sapato e outros tantos descalços, e suas patas tornaram-se pés e mãos. A despeito do que viram e aprenderam, sempre voltam para o buraco de onde saíram. A essa altura, vê-se alguns cactos ao redor.
Enquanto os três conversam em latim, sua mão empurra a garrafa para a boca. O bom senso manda que você pare de beber, mas seu corpo já não lhe presta mais contas. Fiat Voluntas Tua, é o que você diz, e dá mais um gole. Paulo é o primeiro a notar sua presença. Você mal tem tempo de ver uma barba rala crescendo sobre a pele escamosa quando ele mata a pauladas A Galinha que passava por ali.
Com o susto, você verte mais um pouco do álcool que ainda resta. Paulo, a esta altura, espanca a lataria banhada de sangue e grita frases ininteligíveis para você, mas que parecem fazer algum sentido para o povo queimado de sol que assiste ao espetáculo primitivo na planície que os três lagartos insistem em chamar de cratera. Eles dizem que ali caiu um meteoro, e aquele é o lar deles.
Você não quer acreditar, mas começa a gostar daquilo que está ouvindo. Talvez seja a flauta de Paulo que lhe tenha hipnotizado, ou os riffs da guitarra de Deon, ou a bateria tribal de Tacer. Não importa a causa. Você nem quer mais saber. As últimas gotas de álcool escoam por sua garganta, e você quer mais. Ainda há mel depositado no fundo da garrafa. Você enfia a língua e assusta-se ao vê-la dividida em duas extremidades. Aterrorizado, você percebe que sua pele tornou-se dura e quebradiça e seus olhos dilatados, e que sua barriga agora toca o solo árido. Como não consegue falar, olha para os répteis barulhentos e um deles lhe diz: ‘Calma, irmão. Agora você entende o que é o uga-uga core.’
- Eu devo estar bêbado - é o seu último pensamento. No instante seguinte, crava os dentes no rato que será seu almoço. O sangue do bicho tem gosto de álcool, embora você não perceba.

3 comments  

terça-feira, 13 de abril de 2010

Viva La Braza - Adolfo Sá

Viva La Brasa
Tuesday, April 13, 2010
ACORDA NATUREZA EV Lacertae é uma estrela bem menor que o Sol, fotografada pela 1ª vez pelo satélite americano Swift em 25 de abril de 2008. “Há muitos anos a ciência sabe que na superfície solar ocorrem explosões c/ muitas vezes mais energia que a de bombas atômicas”, explica a Wikipedia gringa: “Mas quando astrônomos compararam as labaredas solares c/ as de outras estrelas, as do Sol saíram perdendo.” De todas as estrelas da Via-Láctea, Lacertae tem a chama de brilho mais intenso.

“Em outras palavras, uma minúscula, insignificante estrela capaz de um soco poderoso”, resume Casey Reed, cientista da NASA. O poder de fogo de EV Lacertae está em sua juventude. “Enquanto o Sol é uma estrela de meia-idade, EV é uma adolescente”, diz Reed, “e está girando rapidamente. O giro rápido somado ao interior agitado desprende gases que formam um campo magnético bem mais poderoso que o do Sol.”

Lacertae é o nome de uma banda de Lagarto, Sergipe, cidade cujo nome em latim significa ‘lacertae’. Rock rural experimental, já ouviu falar? No último sábado rolou show dos caras aqui na cidade, depois de uma ausência de quase 5 anos. Foi no Capitão Cook, um bar onde, sempre que eu vou, chove. Foi assim no Retrofoguetes ano passado, e na Plástico Lunar & Corações Partidos há duas semanas. Mas desta vez foi diferente.

CÉU D’ÁGUA

Já estava chovendo antes de eu sair de casa. Desde quinta-feira, e continua a chover. Até o momento, 64 casas destruídas, 1375 danificadas, 2690 pessoas desabrigadas, 16 municípios afetados – entre eles cidades históricas como São Cristóvão e Laranjeiras e a capital, Aracaju. Segundo dados do INMET, nos primeiros 11 dias de abril foram registrados 78% da média de chuva p/ todo o mês.

O Lacertae nunca foi sucesso de público, mas sempre teve moral c/ quem curte SOM. 1ª banda sergipana a tocar no Abril Pro Rock, em 1996, no mesmo evento em que Chico Science fez uma de suas mais clássicas apresentações e que [vejam só] ficou marcado pela enxurrada que atingiu Recife. 1ª banda de rock de SE a participar de uma coletânea nacional, a BRASIL COMPACTO, do selo Rock It! de Dado Villa-Lobos, junto c/ Eddie, Living in the Shit, e umas bandas do Sul e Sudeste. Capa da Ilustrada na Folha de S.Paulo em 98 e novamente destaque em 2001.

2 discos lançados – BERIMBAU DE CIPÓ IMBÉ, de 2000, e A VOLTA QUE O MUNDO DEU, 2005 – pelo próprio selo, Zabumbambus, que também é uma Casa de Cultura no Campo do Crioulo, onde se ensina música, literatura, folclore e artes plásticas de modo informal p/ a criançada local. “O nosso projeto já foi aprovado pelo Ministério da Cultura, mas até hoje o dinheiro não foi liberado”, diz Deon Costa, vocal e guitarra do duo composto por ele e seu primo Aldemir Tacer, o 1º baterista do mundo a usar berimbau c/ bateria, uma adaptação melódica à ausência do baixo.

ARREPIA A SAPUCAIA “O Lacertae faz música espontânea”, disse Tacer ao apresentador Fábio Massari p/ o programa Lado B na Mtv durante o festival Rock-SE em 98. “Eu trabalho com agricultura, planto feijão, abóbora, planto milho, tal, mas agora eu tô plantando música”, Deon falou ao Jornal Hoje numa reportagem especial. “É uma banda da qual não se pode definir um estilo ao certo”, escreveu a jornalista Maíra Ezequiel no site Overmundo: “Sua origem por si só é impressionante: eles são do Campo do Crioulo, que é um vilarejo de uma rua próximo à cidade de Lagarto, no interior do estado. Começaram como um trio, lançaram uma demo que fez um sucesso impressionante, e quase estouraram junto com o movimento Mangue Bit: estavam pra fechar contrato com a falecida Rock It! quando o vocalista pirou (de verdade!) no melhor estilo Pink Floyd e Syd Barrett. Mais impressionante é que a banda continuou e reinventou o som como um duo.”

Maíra definiu bem: foi preciso REINVENTAR um som que por si só já era original. O Lacertae surgiu no início dos anos 90 influenciado pelo movimento grunge e rock industrial – o tal vocalista que “pirou”, o Paulo Henrique, toca instrumentos que ele mesmo inventa, como a percussão feita c/ escapamentos de carros e o inédito ‘cabaçofone’, que remete a um didjeridoo aborígene. Bom, o Paulo em pessoa parece um aborígene. No início de 97 ele foi internado pela família na clínica São Marcelo, famosa por causar mais danos que curas, mas superou essa fase e hoje tem um novo projeto musical, Cinemerne.

“Na verdade Paulinho não pirou, ele viajou desta dimensão p/ outra e só agora está retornando”, diz Gildécio Costaeira, outro primo-lagarto, responsável por toda a arte da Lacertae. A fita-demo de 95, intitulada 100 KM C/ 1 SAPATO, foi eleita um dos 25 melhores DISCOS independentes do rock brasileiro de todos os tempos pelo jornalista Alexandre Matias, do coletivo O Esquema. Top 13, à frente de BALADAS SANGRENTAS de Wander Wildner, MENORME do Zumbi do Mato, A SÉTIMA EFERVESCÊNCIA do Júpiter Maçã, CHORA do Los Hermanos, DE LUXE 2000 do Thee Butchers Orchestra e MANIFESTO DA ARTE PERIFÉRICA de Wado: “[...] a fita de estréia do Lacertae é o elo perdido entre o pop dos anos 90 e o experimentalismo dos dias do Vzyadoq Moe.”

ELETRICULTURA

BERIMBAU DE CIPÓ IMBÉ é o álbum de uma banda jovem em plena ebulição, c/ rocks nervosos tipo ‘Líquido’ – “O homem pensa que está pensando/ mas nem sempre o homem pensa/ como os frutos os homens também despencam [...] eis aí, belas donzelas líquido adentro, orgasmo, paixão e dor/ líquido motor acabou o líquido acabou o amor...” – e baladas sensíveis como ‘Coração’ – “...correndo como água/ voando como o vento/ e acendendo chamas de força no pensamento...”. Psicodelia sertaneja c/ belos fraseados de guitarra e andamento fluido jazzístico, c/ a participação de João Bole Bico na toada e Daniel Maximiliano no piano na surreal ‘Sergipe’, uma faixa instrumental sem guitarra.

O disco seguinte, A VOLTA QUE O MUNDO DEU, foi pouco divulgado e até subestimado, mas surpreende a cada nova audição. Produzido no Estúdio 3, em Aracaju, e mixado no Mundo Novo em São Paulo por Buguinha, técnico de som da Nação Zumbi, o álbum tem elementos eletrônicos e um climão DUB, c/ algumas canções que grudam no ouvido – como ‘O Danado’ e ‘Eu Não Posso Ficar Parado’ – entre uma viagem e outra. “Em méis e méis a lua vinga/ Em seis e seis doze, só pares sem ímpares/ Aí o jogo começa assim é a vida”, dizem em ‘Pra Que Pressa’, num dialeto próprio. Em ‘Entrada e Saída’ cantam: “...meu coração é de pinho, meu pensamento é carinho/ A minha voz é o contato entre a matéria e o vazio...”. Deon toca violão, rabeca e conga além das suas Fender, e Tacer, “berimbateria, 'beck' vocal, conga, flauta, zabumba". Ambos criaram os efeitos. A faixa ‘Amiga Folhagem’ tem a participação de Lira Paes do Cordel do Fogo Encantado e é uma fábula de Sílvio Romero, intelectual e político de projeção nacional nascido em Lagarto no Séc.XIX.

Sílvio Romero é p/ a Lacertae quase o que Selassié era p/ Bob Marley. Há fotos do tiozinho no encarte do disco de estréia, e em 2008 Aldemir Tacer lançou um trabalho solo chamado ELETRICULTURA, totalmente baseado nas histórias de Romero. “Calango fez um sobrado/ de 25 janelas/ Pra botar moças brancas/ mulatas cor de canela”, Tacer canta e toca em sua pequena obra-prima low-fi, um álbum despretensioso mezzo eletro meio matuto, a tirar pelos títulos das músicas: ‘O Calango’, ‘O Jenipapo’, ‘Lá Vem a Lua Saindo’, ‘A Mutuca’, ‘A Cachaça’, ‘Baile da Lavadeira’, ‘Veja Com Quem Quer Ficar’, ‘Cajueiro Pequenino’, ‘Meu Coração Sabe Tudo’ e ‘O Sapo Cururu’. Teclados, guitarrinhas mangue, backing vocals femininos, bateria orgânica mesclada c/ programações...

Grande Tacer. Meu amigo. Já fumamos e rimos muito juntos. Faz uns 2 anos que não o vejo, faltei ao seu casamento, tava fora do ar nesse dia, mal aí véi! Lembro de uma vez que ele apareceu lá em casa de volta de uma temporada no eixo RJ-SP, e me contou de uma noite em que foi parar numa rave: “Eu tava c/ uma menina e não sei como a gente foi parar lá... Aí tinha um pessoal em volta duma turma que tava encenando uma peça, tipo teatro de rua só que na praia, eu já tava doido, espalhei a maquiagem da minha namorada na cara, entrei na roda e comecei a interagir c/ os atores, declamei um poema do Sylvio Romero, ninguém entendeu nada, mas o pessoal que tava assistindo começou a aplaudir”... Hahaha! Grande Tacer.

A VOLTA QUE O MUNDO DEU

Deon Costa também está casado, tem duas filhas, e nos últimos anos criou um projeto paralelo, o Caneco D’água, que ele apresentou neste sábado p/ a meia-dúzia de gatos pingados que não teve medo da chuva. Comemorando os 20 anos da Lacertae, Deon tocou várias clássicas, como ‘Casulo’, ‘Abra a Porta’, ‘Viagem no Pensamento’ e ‘Caminho de Santiago': “Retorno, começo do passado/ A imaginação é a estradinha e o melhor caminho é o de Santiago”... Riffs a la Hendrix c/ solos de wah-wah e microfonia, mais a participação da nova geração do Crioulo, c/ 2, às vezes 3 caras na percussão – fazendo muito barulho – , e os primos Diel no lugar de Tacer na ‘berimbatera’ e Costaeira no baixo em algumas músicas.

“A idéia do nome Caneco D’água inspira-se no gestual do homem trabalhador sedento por água fresca e do ato acolhedor de quem sacia essa sede”, traduz Deon, que lançou em 2009 um EP c/ sons como ‘Corpo Fechado’ e ‘Céu D’água’, que ele tocou no Capitão Cook. E Lacertae, Deon? “Pode significar tanto os répteis multicoloridos como a cidade onde nascemos. A música preserva de maneira natural a liberdade rítmica e poética: um berimbau acoplado à bateria, guitarra e poesias, criando uma massa sonora. Só ouvindo pra entender”, ele avisa.

Costaeira também tem sua banda, Uni Campestre, cujo CD saiu pela Zabumbambus: ‘Florestal’, c/ 10 sons, como ‘Manga Rosa’, ‘Surf Rural’ e ‘Estrela Miudinha’. Deve ser alguma coisa na água de Lagarto. Depois de Deon apresentar seu Caneco D’água, veio a Zanimais, banda nova c/ um vocalista/guitarrista de qualidade e referências explícitas à Lacertae e ao manguebeat. Deon sabe da sua influência e da qualidade de sua música, por isso nem mesmo a ausência da audiência tirava seu sorriso ao final da noite. Quando fui me despedir e falei ao Costaeira que iria comprar um de seus quadros p/ pôr na minha sala ele disse: “Você tem que ir lá em casa, seu danado!”

Durante 2 anos minha esposa Gil manteve uma loja em Lagarto, mas desde que ela fechou não faço uma visita aos meus amigos. Estou devendo essa. Tenho uma relação fraternal c/ a Lacertae de longa data. Em 96, mesmo ano do show no Abril Pro Rock – e na Expo Alternative no RJ – , eu fui convidado por Rodrigo Lariú, do selo Midsummer Madness, a escrever algo sobre os caras p/ um zine que acompanharia a coletânea BRASIL COMPACTO. Mandei um conto, ao invés de um release, escrito em cima do deadline. O mundo deu muita volta depois disso, mas a Lacertae continua brilhando e explodindo em chamas.

CIRCUS ORCHESTRA PRIMITIVA

“Pegue uma garrafa de álcool etílico. Misture com mel. Beba. Você terá a noção exata do que é o Lacertae. Ao primeiro gole a receita parecerá intragável, forte demais para seu paladar acostumado a amenidades. Mas não se amedronte.

Tome outro gole. O álcool ainda desce queimando sua garganta, mas você já estará sabendo como tudo começou. O período jurássico encerrou-se com o choque de um meteoro. Anônimo, O Assassino. Restaram apenas três lagartos. Não trocaram palavra, não precisavam. Os olhos vermelhos se cruzaram e no mesmo momento souberam que só sobreviveriam se permanecessem reunidos. O Terceiro balançou sua cauda sobre o terreno arenoso e os outros dois concordaram com a cabeça. O terceiro gole. O Terceiro já não mais o é. Chame-o de Tacer, por favor. E aos outros, de Paulo e Deon. Suas línguas serpenteadas já proferem palavras. Suas barrigas já não se arrastam mais pelo chão. Muito tempo se passou, eles andaram 100 Km c/ 1 Sapato e outros tantos descalços, e suas patas tornaram-se pés e mãos. A despeito do que viram e aprenderam, sempre voltam para o buraco de onde saíram. A essa altura, vê-se alguns cactos ao redor.

Enquanto os três conversam em latim, sua mão empurra a garrafa para a boca. O bom senso manda que você pare de beber, mas seu corpo já não lhe presta mais contas. Fiat Voluntas Tua, é o que você diz, e dá mais um gole. Paulo é o primeiro a notar sua presença. Você mal tem tempo de ver uma barba rala crescendo sobre a pele escamosa quando ele mata a pauladas A Galinha que passava por ali.

Com o susto, você verte mais um pouco do álcool que ainda resta. Paulo, a esta altura, espanca a lataria banhada de sangue e grita frases ininteligíveis para você, mas que parecem fazer algum sentido para o povo queimado de sol que assiste ao espetáculo primitivo na planície que os três lagartos insistem em chamar de cratera. Eles dizem que ali caiu um meteoro, e aquele é o lar deles.

Você não quer acreditar, mas começa a gostar daquilo que está ouvindo. Talvez seja a flauta de Paulo que lhe tenha hipnotizado, ou os riffs da guitarra de Deon, ou a bateria tribal de Tacer. Não importa a causa. Você nem quer mais saber. As últimas gotas de álcool escoam por sua garganta, e você quer mais. Ainda há mel depositado no fundo da garrafa. Você enfia a língua e assusta-se ao vê-la dividida em duas extremidades. Aterrorizado, você percebe que sua pele tornou-se dura e quebradiça e seus olhos dilatados, e que sua barriga agora toca o solo árido. Como não consegue falar, olha para os répteis barulhentos e um deles lhe diz: ‘Calma, irmão. Agora você entende o que é o uga-uga core.’

- Eu devo estar bêbado - é o seu último pensamento. No instante seguinte, crava os dentes no rato que será seu almoço. O sangue do bicho tem gosto de álcool, embora você não perceba.”

Posted by Viva La Brasa at 7:27 AM
3 comments:

Álvaro Müller said...

Tive a oportunidade de conhecer o Lacertae - e o trabalho do Costaeira de pintura em vinil - quando ainda era estudante de jornalismo e apresentava um programa experimental em Lagarto, na Rádio Eldorado (acho que era isso). Gostei demais do som dos caras e do projeto da escola de música. Comprei dois "Berimbau de Cipó Imbé" mas logo em seguida encontrei dois amigos dos quais gostava muito. Resultado: dei os dois CDs de presente. Mas tenho fé de que um dia ainda encontrarei outro CD, com aquela capa de papelão.
Falow, Sá!
5:34 PM
Cenecos said...

Maassa velinho muito bom grade interpretação sobre o LACERTAE.
Parabéns Adolfo muito bom
DeonLacertae
6:47 AM
Anonymous said...

Cada vez que leio fico emocionado Velinho OBRIGADO pela gentileza
DeonLacertae
8:38 PM

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